Uma Casa na Beira da Ponte
Uma casa na beira da ponte
A vida, às vezes, nos proporciona momentos de beleza rara, capaz de nos levar à profundas reflexões e de nos trazer de volta ao tempo para revivermos momentos inusitados, e foi numa tarde que pude ter a sorte de ganhar um desses presentes.
Outro dia, quase que por acaso, passando por Goiás Velho, antiga capital de Goiás, cidade tombada pelo Patrimônio histórico da humanidade – prêmio mais que merecido por sua história e importância cultural, refletido por seus belos traços de arquitetura barroca de exuberante expressão, capaz de proporcionar aos seus visitantes momentos de raro prazer.
Suas construções dos tempos coloniais, emolduradas por igrejas e palácios a exemplo do "Conde dos Arcos", que contrastando com a modernidade dos nossos dias, refletem o quanto da importância de preservar nossos acervos culturais. Ela está encravada nas barrancas do Rio Vermelho, testemunho de anos e anos de história do povo goiano, que mesmo depois de transferir sua capital para o belo planalto, continuou a amar àquela terra.
Quem ainda não conhece aquele lugar, precisa conhecer!
Atendendo ao impulso do coração quis visitar a estrela principal do lugar: "A casa da Cora Coralina", toda bonita e pronta para receber o turista, fica bem ali ao lado da ponte que embora estreita, dá passagens aos veículos e pedestres. E é aqui que entro na história, já que tive o privilégio de atuar como médico, prestando atendimento, à dona daquela casa: Ana Lins do Guimarães Peixoto Bretãs, a menina da beira da ponte, a Cora Coralina de Carlos Drummond de Andrade, a Cora de todos nós.
Exemplo de sabedoria, perseverança e de autodeterminação cultural, ela viveu por anos e anos naquele lugar, hoje casa da cultura da cidade, e que também serve para contar sua própria história.
Cursou apenas o 3o ano do primário e, no entanto, conseguiu, ao longo de seus 90 anos, ser paciente, bondosa e esperançosa bem como aguardar a chegada de seus 70 para publicar seu primeiro trabalho, "Poemas dos becos de Goiás e outras histórias mais", ainda em tempo de receber o reconhecimento do meio literário do Brasil, como exemplo de cultura e sabedoria, sendo premiada, em vida, com os mais honrosos títulos, a exemplo de, Doutor honoris causa", da Universidade Federal de Goiás, em 1983, e "Troféu Juca Pato da União Brasileira de Escritores”, também em 83.
Final da década de 70, quando ela em fase de convalescença de uma cirurgia de colo do fêmur, com implante de prótese ortopédica, realizada em São Paulo, permanecia em um convento de Goiânia, e para minha honra fui escalado pela direção da Santa Casa de misericórdia, para fazer a visita médica diária àquela tão ilustre personalidade.
Foram inusitados os momentos que juntos passamos onde eu fazia questão de prolongar nosso tempo e como presente ganhava as declamações de lindas poesias de sua autoria, dentre elas, bem me lembro de uma, que ficou gravada em minha memória, e que lhes passo agora como forma de bem compartilhar o que de bom a vida pode nos proporcionar:
Aninha e suas pedras
Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
E construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras
Faz doces.
Recomeça....
Faz de sua vida mesquinha um poema.
E viveras no coração dos Jovens e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte, vem a estas páginas.
E não entraves seu uso a quem tem sede”
E ela, ali na sua fragilidade de octogenária – nasceu em 1889 e nos deixou em 1985. Quando nos recebia, trazia sempre um sorriso estampado no rosto. A sonoridade de sua voz continua ainda hoje em meus ouvidos como reflexo daqueles momentos mágicos, capazes de superar todas as agruras que a profissão de médico pode nos trazer. Acrescido ainda a isso, guardo o sabor dos deliciosos doces que carinhosamente nos era oferecidos por ela.
Que bom que o povo goiano soube regar com sabedoria e dedicação, preservando sua casa, acervo cultural da mais alta poetiza de sua gente, por que não dizer, a mais venerada dentre todo o povo goiano, quiçá do Brasil.
Jales Paniago
Crônica