Entre o Desespero e um Casamento Arranjado


- Rá! - ele riu
- O que foi?
- "Menino de oito anos se casou" - ele lê, respondendo, por detrás do jornal* aberto.
Imaginei tratar-se de algum costume tribal dos rincões da África.
- "Os pais de Reece Fleming, um menino britânico"...
Britânico?? Pensei...
- ..."de oito anos que estava com leucemia havia quatro,"...
Oh!
- ..."decidiram atender ao último pedido do filho: se casar com uma amiga de escola."
Casar? Amiga?
- "Desde maio, quando souberam que Reece teria poucas semanas de vida, o casal decidiu fazer tudo para que o menino estivesse feliz em seus últimos dias."
Que puxa, Charle Brown!
- "Como o maior sonho do garoto era reencontrar"...
Reencontrar? Então não eram namoradinhos?
- ..."a colega Elleanor Purgslove e pedir sua mão em casamento, os pais das duas crianças concordaram"...
Mas, como as autoridades britânicas aceitaram isso?
- "em realizar uma cerimônia simbólica"...
Aaaaaahhh! Simbólica!!
- ..."com troca de alianças, passeio de limusine e jantar. O “casamento” ocorreu em 4 de julho"...
Coincidência... dia da Independência americana...
- "um dia antes de Reece morrer".
Os olhos encheram-se de água, pela dedicação desses pais em proporcionar ao filho um final de vida feliz, da abnegação dos pais da jovem viúva. Ela nunca esquecerá isso. Eu, que fui noivinha na festa junina do jardim de infância jamais esqueci. E não havia nenhum sentimento tão intenso como a perspectiva da morte.
Restaram algumas lacunas... será que disseram a ela que ele morreu, que ela jamais voltará a vê-lo, tocá-lo ou falar com ele?
Pode parecer que estou fazendo muito drama em volta da partida de um garoto riquinho que teve um epílogo tão pleno, enquanto tantas outras crianças no mundo todo, inclusive no Brasil, têm um destino muito mais cruel, morrendo de fome, de doenças terríveis, catástrofes, guerras estúpidas (ops! pleonasmo!), sem ninguém por elas.
Sinto, sim. Sinto por todas elas, sem exceção. As crianças prostituídas, vítimas de abuso por quem delas deveria zelar, recrutadas por criminosos, corrompidas, destruídas naquilo que lhes é mais valioso: um coração puro e inocente de criança. Por elas não me enchem os olhos de água, mas o estômago de ácido, o coração de revolta, o espírito de dor. E, para não corroer-me na frustração da impotência, faço o que posso por algumas delas.
Mas, o que me comoveu na história do pequeno Reece, além claro, da inevitável perplexidade diante da morte de uma criança, foi a maneira como seus pais lidaram com a dor da perda iminente. É o mesmo sentimento que me faz admirar o professor Randy Pausch que, ao descobrir-se portador de uma doença terminal, aos quarenta e sete anos de idade, com três filhos ainda pequenos, ao invés de se revoltar dá uma lindíssima última aula com importantes lições de vida. Nada que qualquer dos presentes não já tivesse lido ou ouvido em algum lugar, mas vindo de um homem marcado para morrer, esses recadinhos divinos parecem muito mais significativos.
A forma como algumas pessoas lidam com o sofrimento, com a doença, com as deficiências, com as limitações, o modo como elas arrancam do fundo do seu ser a força necessária para superar tudo e ter e dar alegria, realizar sonhos, construir vidas e lembranças...
Sim, é fato. Há doenças, fome, há destruição, guerras, corrupção, egoísmo, violência, medo, injustiça... Há um sem número de motivos para acreditar que o mundo não tem mais jeito, não há mais esperança para nós. Como aconteceu ao pequeno Reece ou ao professor Randy, estamos condenados. Resta-nos muito pouco de vida. Vida que será miserável até o fim, a dor e o sofrimento agravando-se a cada dia. Mas há, em nosso âmago, a força da superação, a esperança de que encontraremos uma solução, uma saída que nos permita reverter o jogo, ganhar mais algumas semanas, meses, anos, com a melhor qualidade de vida possível... imaginando que, talvez nesse intervalo, consigamos encontrar a cura definitiva para todos os males do mundo.


* Correio Braziliense, edição do dia 26/07/2008