Prefácio
O tumulto lá fora parecia grande. Lídia acabara de fechar a janela, cortando os únicos raios de sol que cruzavam a sala. Agora, escuro, silêncio, vazio. A solidão de duas pessoas, Lídia e eu, unia-se às vozes pronunciadas a alguns metros do chão. As pessoas pareciam agitadas demais para um domingo sem força, para um ar sem vida. Logo entendi que, naquele estágio de “humanidade”, o que movia as pernas e os lábios era o furto dos sonhos bons, o qual dava lugar ao prazer imediato do cobre. Nesse contexto, os efeitos de um sol tímido ou de um vento vacilante não tinham peso, a não ser para os poetas e melancólicos; para, talvez, os melancólicos poetas.
Lídia havia sentado na poltrona marfim, escondida no ângulo formado por paredes marrons e frias. Na verdade, fechada a janela, andara de um canto a outro da sala duas vezes, até decidir repousar os pensamentos. O que nos separava não era a distância de poucos metros em um cubículo espaço de salão, nem mesmo a confusão dos sons; o que nos apartava era o olhar disperso no íntimo dos universos particulares. A questão é que não estávamos apaixonados para que os nossos próprios mundos se encontrassem por vezes e passeassem juntos, dividindo a luz de qualquer que fosse o desejo. Sendo assim, estávamos mesmo- sozinhos- em nós mesmos.
Cheguei a questionar se não seria melhor que a janela estivesse ainda aberta ao domingo. Aquele escuro confundia-se com a nudez da minha realidade naquele instante. Lídia arrependera-se de havê-la fechado? Não, creio. Dificilmente desperdiçava botões com camisas remendadas. Preferia fabricar novas, mesmo que inconformes, feias e até absurdas. Eu a culpava às vezes por isso, os retalhos eram bons professores. Sob a vista de algumas comparações, divertia-me, até que Alberto invadiu a sala com passos leves e altivez contrastantes. Sua presença fora como uma pedra lançada na calmaria de um lago virgem. De volta à sala, saído de mim, fitei Lídia, vi os seus olhos no homem e um sorriso de estranha felicidade desenhar-se em seu rosto. Acompanhei, pela primeira vez, como cocheiro de uma carruagem dourada- com cavalos mancos- dois mundos serem um só. E, então, adormeci os sonhos pretendidos.