Vingança é Prato Frio
que se Paga Conforme a Lei
O crime? Ninguém se lembra... Um troco errado, um cheque recusado, um atendimento mal feito, uma pequena grosseria... Talvez todas as anteriores. E quem se importa? Memorável foi o castigo. Nem Dostoyevsky pensaria em tanto.
Numa sexta-feira como tantas outras, sentaram-se no Kuo Pin, bar e restaurante chinês, alvo da vingança. Comeram, beberam e festejaram como sempre, mas havia algo no ar, uma certa ansiedade. Por volta das onze da noite, já não se contendo, pediram a conta: cerca de mil e trezentos cruzeiros. Sim: cruzeiros. A história é antiguinha, eu nem freqüentava boteco ainda... Mas, aconteceu. Quem me contou estava lá.
O garçom entregou a dolorosa a um dos convivas que, após uma ligeira conferência, despejou, sobre a mesa, o conteúdo de um saco plástico que carregava com cuidado: mil e duzentos cruzeiros em moedas de um cruzeiro e cinqüenta centavos. O restante surgiu de todos os bolsos por meio de moedas e mais moedas, de mesmos valores, que iam sendo amontoadas sobre a mesa. O pobre serviçal não podia acreditar. Disse que não podia aceitar o pagamento daquela forma. A própria dona do estabelecimento, uma chinesa meio antipática, vendo a confusão, veio juntar-se a ele, nos protestos contra aquele pagamento tão inusitado. Foi quando um dos presente retirou do bolso um surrado exemplar da Lei de Contravenções Penais, abriu numa página já marcada e leu em voz alta, solene, impondo silêncio:
- CAPÍTULO V, DAS CONTRAVENÇÕES REFERENTES À FÉ PÚBLICA.
Tomou fôlego, olhou em volta como que aprovando a audiência obtida, prosseguiu:
- Art. 43. Recusar-se a receber, pelo seu valor, moeda de curso legal no país. Pena: multa de...
Não pode continuar, interrompido pelas palmas dos colegas e pelas gargalhadas das mesas vizinhas. Derrotada, a proprietária, ainda resmungou alguns impropérios em Mandarim e chamou outro garçom para ajudar na conferência do dinheiro. Estava certinho: eles haviam dividido as moedas de forma a facilitar o despejo teatral, sem perder o controle do valor.
Depois, piedosos, ainda ajudaram na contagem, separando as moedas de um cruzeiro e de cinqüenta centavos.
Foram embora comemorando a traquinagem e, espertos, só voltaram quando o local mudou de donos e virou uma pizzaria, chamada San Marino, que funciona até hoje. Isso aconteceu pouco tempo depois, o que prova que a senhora Pin era mesmo ruim na arte de conquistar e manter os clientes. Ou se cansou de lidar com jovens universitários vingativos, quem sabe?
Imagens daqui.