Transporte para o viageiro do Além

Trabalhava na secretaria de Assistência Social, auxiliando creches, asilos, clínicas, centros de convivência, acolhimento de mendigos, como também o Centro de Triagem que recolhia mendigos Possuíamos uma ambulância que era de grande benefício auxiliando-nos a socorrer os necessitados.

Mas... Constantemente deparávamos com um grande problema. A solicitação do veículo pelos deputados para prestar assistência aos seus compromissos políticos.

Em minhas viagens pelo interior mineiro, me acompanhava um motorista que se chamava Marcos. Era um excelente motorista, mas quando adolescente perdeu o sentido da audição, mas tal deficiência não comprometeu sua atividade profissional - suas mãos sobre o volante liam diferentes vibrações.

Era um rapaz inteligente, divertido, "natural" e junto a ele tive oportunidade de presenciar ocorrência que superava a ficção.

Narro uma delas.

O deputado se apresenta em minha sala solicitando o motorista.

Peço ao boy para chamar Marcos na garagem. Depois dos cumprimentos o legislativo deu início de imediato ao diálogo.

- Quero que me faça um grande favor... Levar um ser que deu seu último suspiro há poucas horas, para sua cidade.

Ele pertence a uma família numerosa, mas, infelizmente não possui condição financeira para o traslado. Não posso perder a imensidade de votos. Ele tem um bocado de filhos, tios, primos, amigos, imagine... uma "familiona" setecentos, a mil pessoas mais ou menos.

Você tem que me ajudar a fazer esta caridade! Declara o político com lágrimas nos olhos.

Marcos pergunta:

- O senhor já conseguiu a ambulância? O veículo da secretaria está ocupado.

- Meu rapaz, que ambulância que nada! Você não está entendendo. O aluguel de uma ambulância custa caro... Eu lhe darei uma grande gratificação para esta viagem.

Aceita realizar este ato de caridade? O que acha? Concorda?

Já consegui o carro que não é meu, - Tudo arranjado, e terá ainda um companheiro para ajudá-lo no trajeto. E já lhe digo o nome do moço que resolveu abandonar o mundo dos vivos.

Veja que nome sugestivo – Agrícola Beterraba Areia Leão.

O motorista assustadíssimo olha para o deputado e diz:

- Senhor deputado, me parece que sua cabeça não está funcionando bem, - Próximo da loucura! Já pensou..., e a fiscalização na estrada? E tem mais, quem vai segurar o falecido Agrícola Beterraba Areia Leão?

No porta-mala é impossível. Se formos pegos pela fiscalização, serei acusado de assassinar o tal Beterraba, garanto que o senhor sairá ileso como um anjo. Se por acaso eu citar a verdade verdadeira, se eu o acusar de tal desrespeito à lei... – Me diga com toda sinceridade, alguém irá acreditar em mim?

Esta simples figura, humilde e surdo? O senhor está a conversar comigo com palavras pausadas, eu o entendo, mas não entenderei as palavras ditas pelo policial rodoviário... Ele ficará nervoso com meu silêncio, me prenderá por falta de respeito à autoridade, e mais ainda, assassinato do defunto Agricola, sei lá mais o que!

- Meu amigo, eu dobro a oferta e o pagarei agora. Enfia a mão no bolso e retira um bom bocado de notas, abre as mãos de Marcos e entrega o dinheiro. E, tem mais, seu ajudante para esta viagem é forte, destemido, você irá gostar dele.

Marcos ao chegar dessa infeliz viagem apresentou-me o relatório que deixo expresso nessa folha.

À noite Marcos e seu ajudante Antônio receberam o corpo de Beterraba vestido com elegância, barbeado, e com ajuda de funcionários do hospital, “amigos do deputado”, o colocaram no banco de trás preso com o cinto de segurança, chapéu.

“Ótimo disse Marcos, sua aparência é de um viajante bêbado”.

Iniciaram a viagem, noite escura, sem luar, levando uma alma que não sabia – se era boa – má, ou se ainda andava por este mundo afora.

O companheiro Antonio de corajoso não tinha nada, horrorizado não olhava para trás, já se mostrava amedrontado, inseguro, arrependido de ter aceitado tal missão!

A estrada era só buraco, após quatro horas de viagem - acontece algo imprevisível:

Agrícola solta do cinto de segurança e se debruça em cima de Marcos descansando a cabeça em seu ombro.

- “Você não imagina amiga, que horror! Não conseguia desvencilhar-me do Agricola ou sei lá ... Beterraba, mais de outras almas que deveriam vagar por ali. Meu corpo tremia de medo, gelei de terror, tinha a fronte banhada em suor, a noite escura, eu ali com aquele corpo frio, do Além me abraçando.

Antônio abriu a porta do carro e foi para a beira da estrada. Era mais uma assombração! Minha voz sumiu... Achei que ia morrer. Passado alguns minutos - recuperei minha segurança, acentuando firmeza na voz gritei o Antônio que se aproximou devagarzinho com sentimento de terror - olhava para o Beterraba como se visse o morto ressuscitado. Eu bravo – mostrando fortaleza, gritei com firmeza para que ele deixasse de ser maricas – e ajudasse Beterraba assentar no banco. Estava com medo de que?

Voltamos aquele corpo feio, frio-endurecido, para posição correta, apertamos bastante o cinto e prosseguimos a viagem em mudez absoluta, contando minutos e segundos para o término do infeliz compromisso.

Jurei para mim mesmo, por dinheiro algum – jamais seria motorista de gente que já partira para o Além.

“Paramos em um posto para colocar gasolina no carro”. Quando aproxima alguém e pergunta:

- “Que tem este moço? Está pálido, com fisionomia de um morto

Respondi - “Bebedeira companheiro”! Somente bebedeira, farra - é isso aí! Olhei desconfiado para Beterraba com receio de alguma reação...

Ele realmente não está bem. Vamos levá-lo para o hospital.

Por fim chegamos ao destino!

Agrícola Beterraba Areia Leão foi entregue aos agradecidos familiares.

“Setecentos votos salvos por este ato de caridade...”.

Marília
Enviado por Marília em 24/07/2008
Reeditado em 19/03/2015
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