CENTELHAS INFANTIS
Anoitece. O retorno ao lar é marcado pelo trânsito e algum cansaço.
Mal fecha a porta e... Eis o escuro. Apagão, queda de sistema, raios ou por qualquer motivo desconhecido, a casa fica refém das leves sombras. Os movimentos são limitados aos rotineiros passos.
O banho quente, o jantar, o estudo com a criança... Tudo à mercê da volta da luz. Busca as velas das últimas compras engavetadas em algum lugar da dispensa. Demora a encontrá-las entre as conservas e os sacos de mantimentos...
Por que não as deixamos em algum lugar à mão? É sempre a mesma angústia de procurar no escuro a claridade possível...
Uma hora. Cheiro de vela, pavios torcidos, pequenos tocos espalhados pela casa. Alguns acidentes e elas tateiam as paredes de pavios curtos. Pequenas curiosidades seguidas de choros, a cera se derrete nas mãos mais impacientes. A luz não volta. A mãe tenta distrair a filha. Apoiam-se na janela e observam o quarteirão apagado, as pequenas chamas nas janelas vizinhas, os faróis apressados, algumas silhuetas no escuro.
O jantar, o banho quente... Os pequenos prazeres são trocados pela espera da continuidade da corrente. Sentam-se no chão com os biscoitos e refrigerantes dos finais de semana. A impossibilidade de seguir a rotina faz com que permaneçam próximas. A filha confidencia pequenas aventuras...
“Sabe a Marina...”
“Hoje brincamos de seguir os meninos...”
“Aprendi a fazer conta em pé...”
A mãe escuta com a atenção sombreada. Tem tanta coisa para fazer... O banho quente, alguns telefonemas, a tarefa da filha... Amanhã terá tantos compromissos... Estava tudo tão planejado: acompanhamento das lições, matemática, letra cursiva... Será um apagão?
A menina prossegue o falatório. As pequenas descobertas, suas travessuras... Marina, Bruna, Jade, Marcus Vinícius, João... Tantos nomes presentes no escuro desenham formas nas paredes... A menina ilustra algumas histórias com uma suave fresta para as luzes vivas da infância.
“Tá ouvindo, mãe... A Marina...”
A mãe costura as últimas palavras, abraça a filha, tenta se compenetrar nas narrações, mas está presa à falta de luz. Seus pensamentos tateiam as tarefas diárias e a prendem à impossibilidade, sente-se como uma lâmpada apagada entre tantas.
Como dar continuidade aos deveres cotidianos?
De repente, a filha de sete anos fica em silêncio e, fitando a chama da vela, declara com suavidade “tenho medo que a luz do meu coração se apague e eu não possa mais amar.”
A mãe se assusta com a intensidade das palavras da filha. Por instantes, fica perdida com tanta clareza, com o foco da linguagem infantil, mas a criança, sem ter noção da elevação do seu pensamento, continua suas narrações cotidianas...
“Ela é minha melhor amiga... Mãe, tá escutando? A Marina...”
Alguns apagões são necessários. A mãe compreende-se um pavio incandescente. Com a chama renovada, arrisca-se novamente no parapeito da janela e vê um céu estrelado ao lado da filha.
“É conta armada, mãe! Aprendi hoje...”
“...seguimos os meninos...”
A mãe observa a lua crescente... Não se apagam as luzes verdadeiras!