Da inconveniente sinceridade das crianças
A sinceridade das crianças, por vezes, é assustadora, mas na maioria das vezes sou forçado a admirá-la. E até me arrisco a dizer que não há no mundo coisa mais bela. Não sou pai, mas posso imaginar a aflição que se passa na cabeça de um pai quando – com um pé fora do emprego - decide convidar o patrão para um almoço.
Ocorre que o pai tinha lido numa revista que uma das fórmulas mais consagradas de se garantir um emprego é expressar, na hora do almoço, todo tipo de bajulação e de manifestações de apreço ao Sr. Patrão, “seu deus-todo-poderoso aqui na terra”. De tal modo que leu e passou a executar passo-a-passo as recomendações da revista:
- É como eu costumo falar pra minha esposa, seu Nava, o senhor é um homem que me desperta uma grande admiração, um sujeito de grande índole. E, sobretudo, dono de uma incrível capacidade administrativa.
O patrão, feliz da vida, sorri, enquanto fisga o macarrão que lhe escapa do garfo. E assim, orgulhoso, acaba por confessar algumas das qualidades do seu empregado. O pai julga-se salvo. Mas aí o menino – e menino num presta – inventa de botar a boca onde num é chamado:
- E a barriga também!
- Como?
Todos na mesa ficam sem entender. O pai, fazendo-se de desentendido, comete um terrível deslize de estratégia e pergunta:
- Do que você está falando, menino?
- Da barriga do seu Nava, pai. É grande também.
- Menino! Isso são modos?
- É o que o senhor fala todo dia pra minha mãe.
O pai meio encabulado ainda esboça um sorriso, comentando amistosamente “são coisas de criança, né seu Nava”. E pra reforçar, emenda:
- É. Mas trata-se de uma barriguinha de nada que o senhor pode tirar com um pouco de ginástica, não é seu Nava?
Mas o diabo do menino tá inspirado:
- Se ele tiver coragem, né pai?
- Por quê? – pergunta o patrão.
- Não é nada não seu Nava! – o pai soa frio - Não dê ouvidos pra criança. Você, menino – “psiu” - fique quieto!
Mas seu Nava ainda insiste:
- Por que me faltaria coragem, em menino?
- É que meu pai sempre diz pra minha mãe assim ó: “aquela baleia do seu Nava não tira aquela bunda gorda dele da cadeira nem pra assinar um papel”.
Pronto. É o fim do almoço. No mesmo dia o patrão dá com as contas do pobre pai. E o menino leva aquela surra de esquentar fivela.
Às vezes essa sinceridade das crianças chega a ser cruel. Ah! Crianças, porque sois tão sinceras? O mundo repele vossa sinceridade, mal sabem vocês, na vossa inocência, o quanto a vossa sinceridade é inconveniente para nós, os adultos. Se pudéssemos, essa palavrinha seria abolida para sempre das nossas relações, inclusive seria expurgada do dicionário.
Muitas vezes, nós - as pessoas grandes – nos comprometemos por falta de sinceridade, e na esmagadora maioria das vezes por exagerada conveniência. Como por exemplo, naquela esperada hora em que a visita chata está finalmente se despedindo, e a gente, cheio de prosa, diz:
- Que é isso, dona Neuza? Mas já vai agora? Tão cedo...
Aí surge uma criança do nada.
- Ué, mãe! Num é a senhora que disse que tava tarde?
Desmascarada, a mãe ainda tenta se esquivar:
- Tarde pra menino ficar na rua, eu disse...
Mas a criança, implacável, arremata:
- Não, mamãe. A senhora falou que já era tarde pra Dona Neuza ficar andando por aí, pelas casas alheias. Até o papai se escondeu no quarto pra não ter conversa.
A mãe do menino - coitada! - essa, se pudesse, cuspiria no chão e se mataria afogada.
Oh crianças, tenham piedade dos adultos, eles não sabem o que fazem!