SIMPLESMENTE "DONA"
A nossa memória, conhecida também por lembrança, é uma das coisas mais espantosas que o ser vivo tem! E de vez em quando ela nos transporta para passagens, na maioria das vezes, boa, e nos faz recordar de cenas, pessoas, épocas.
A nossa memória, conhecida também por lembrança, é uma das coisas mais espantosas que o ser vivo tem! E de vez em quando ela nos transporta para passagens, na maioria das vezes, boa, e nos faz recordar de cenas, pessoas, épocas.
Agora à noite eu estava sem fazer nada, sem vontade de fazer alguma coisa, apenas contemplando a televisão, mas sem ver o que nela estava estampado, o que passava e muito menos o que dela saia de som: apenas uma abstração de quem queria somente se balançar na cadeira preferida, essa mesma que fica defronte a televisão e que nos serve de descanso para o corpo, mas que nos deixa cansado mentalmente por ver cenas absurdas e programação sem nenhuma criatividade, apenas cópia de outros programas.
De repente, a notícia: acaba de falecer Dercy Gonçalves. E os apresentadores foram descrevendo uma biografia rápida, sucinta, dos 101 anos que a atriz viveu: que se façam as devidas homenagens a ela, pois essa mulher foi um marco, um símbolo de luta numa época onde a mulher era discriminada, quase nunca valorizada e sua estória de vida encorajou outras mulheres a trilharem o mesmo caminho que ela conseguiu trilhar e vencer.
E foi diante da notícia sobre a comediante que minha lembrança me levou para a adolescência dos meus tempos idos: morava eu na casa de minha avó materna, conhecida e alcunhada de “Dona” por todos. Era uma senhora de cabelos brancos, simpática, muito bondosa, e que cuidava dos seus netos, de forma especial, assim como todas as avós cuidam.
Tempos difíceis para mim – adolescente rebelde – tinha em “Dona” o meu amparo, a minha proteção, onde sempre estava pronta para me fazer uma surpresa: fosse num trocadinho que guardava no bolso do vestido e que era dado sempre aos domingos para eu ir ao clube Ypiranga, fosse no delicioso prato, que ela sabia, eu gostava de comer.
E era assim, com simplicidade, que ela ensinava aos netos. Nunca perdia a calma, nem dizia impróprios contra eles, nem castigava. Lembro-me do trabalho que eu dava, no entanto, ela nunca cobrou nada de mim. Gostava de comida de panela – como se dizia antigamente – e guardava para o jantar, um bom feijão com arroz e carne. Eu era seu cúmplice nessa empreitada: ela sempre me chamava para comer com ela. E tinha um jeito peculiar de tornar a comida mais saborosa: fazia, com as mãos, bolinhos da comida e me dava para comer – assim como fazem os sushimens quando estão preparando suas iguarias da culinária japonesa. Era delicioso!
Ela também era a encarregada de me acordar, de madrugada, para ir para as aulas de educação física. Só uma das vezes se enganou do horário: o relógio de parede, grande e antigo, badalou e ela pensou ser a hora de me chamar. Resultado: acabei indo parar no Colégio Estadual às 03h00min da manhã. O pior não foi estranhar que ainda estava muito escuro: pior mesmo foi passar em frente ao cemitério e ainda ouvir batida de lata, som que vinha de dentro da parte onde repousava aqueles que já tinham ido para o andar de cima. Até hoje ainda me recordo da “carreira que dei” que nem bala pegava, até os portões do referido colégio. O vigia quando me viu se assustou muito mais do que eu. Disse ele depois: “- menino, você viu fantasmas?”
Acho que não vi fantasmas, mas o medo de adolescente, quase menino ainda, foi mais forte que a coragem de raciocinar. Depois disso, passei a olhar a hora depois que ela me acordava, porém nunca mais foi preciso voltar a deitar-me: ela sempre acertava no badalar dos ponteiros.
Um belo dia ela se foi, assim, de repente. Sentiu-se mal pela madrugada, quando o relógio badalou dizendo que já era hora. Foi levada para ser atendida. Uma sua neta, médica, foi quem a viu pela última vez. Ela estava na unidade de terapia intensiva e chegou a sentar-se, pentear os cabelos compridos e branquinhos. Parecia bem. Sorriu para sua neta, deitou-se e fez sua passagem, candidamente. Faz tempo. Irá rir com as coisas de Dercy, com certeza.
De repente, a notícia: acaba de falecer Dercy Gonçalves. E os apresentadores foram descrevendo uma biografia rápida, sucinta, dos 101 anos que a atriz viveu: que se façam as devidas homenagens a ela, pois essa mulher foi um marco, um símbolo de luta numa época onde a mulher era discriminada, quase nunca valorizada e sua estória de vida encorajou outras mulheres a trilharem o mesmo caminho que ela conseguiu trilhar e vencer.
E foi diante da notícia sobre a comediante que minha lembrança me levou para a adolescência dos meus tempos idos: morava eu na casa de minha avó materna, conhecida e alcunhada de “Dona” por todos. Era uma senhora de cabelos brancos, simpática, muito bondosa, e que cuidava dos seus netos, de forma especial, assim como todas as avós cuidam.
Tempos difíceis para mim – adolescente rebelde – tinha em “Dona” o meu amparo, a minha proteção, onde sempre estava pronta para me fazer uma surpresa: fosse num trocadinho que guardava no bolso do vestido e que era dado sempre aos domingos para eu ir ao clube Ypiranga, fosse no delicioso prato, que ela sabia, eu gostava de comer.
E era assim, com simplicidade, que ela ensinava aos netos. Nunca perdia a calma, nem dizia impróprios contra eles, nem castigava. Lembro-me do trabalho que eu dava, no entanto, ela nunca cobrou nada de mim. Gostava de comida de panela – como se dizia antigamente – e guardava para o jantar, um bom feijão com arroz e carne. Eu era seu cúmplice nessa empreitada: ela sempre me chamava para comer com ela. E tinha um jeito peculiar de tornar a comida mais saborosa: fazia, com as mãos, bolinhos da comida e me dava para comer – assim como fazem os sushimens quando estão preparando suas iguarias da culinária japonesa. Era delicioso!
Ela também era a encarregada de me acordar, de madrugada, para ir para as aulas de educação física. Só uma das vezes se enganou do horário: o relógio de parede, grande e antigo, badalou e ela pensou ser a hora de me chamar. Resultado: acabei indo parar no Colégio Estadual às 03h00min da manhã. O pior não foi estranhar que ainda estava muito escuro: pior mesmo foi passar em frente ao cemitério e ainda ouvir batida de lata, som que vinha de dentro da parte onde repousava aqueles que já tinham ido para o andar de cima. Até hoje ainda me recordo da “carreira que dei” que nem bala pegava, até os portões do referido colégio. O vigia quando me viu se assustou muito mais do que eu. Disse ele depois: “- menino, você viu fantasmas?”
Acho que não vi fantasmas, mas o medo de adolescente, quase menino ainda, foi mais forte que a coragem de raciocinar. Depois disso, passei a olhar a hora depois que ela me acordava, porém nunca mais foi preciso voltar a deitar-me: ela sempre acertava no badalar dos ponteiros.
Um belo dia ela se foi, assim, de repente. Sentiu-se mal pela madrugada, quando o relógio badalou dizendo que já era hora. Foi levada para ser atendida. Uma sua neta, médica, foi quem a viu pela última vez. Ela estava na unidade de terapia intensiva e chegou a sentar-se, pentear os cabelos compridos e branquinhos. Parecia bem. Sorriu para sua neta, deitou-se e fez sua passagem, candidamente. Faz tempo. Irá rir com as coisas de Dercy, com certeza.