O Bardo, o anônimo e o rabisco

Numa dessas leituras minhas, achei algo que, a priori, não dei muita importância. É sempre assim. As idéias nunca se revelam inteiras, elas adoram nos seduzir, puxar a nossa mão-imaginação e ir despindo, aos poucos, o segredo delas, a seda que cobre o corpo nu. Drummond tem um poema que fala sobre isso. Chama-se Procura da poesia:

“(...) Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralizados, mas não há desespero,

Há calma e frescura na superfície intacta.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam (...)”

Pois o livro que eu estava lendo também era de poesias e me provocou como o vermelho nas touradas. Lá dentro, escrito a lápis, em letras meio “garranchais” e misturado aos poemas impressos, estava o rabisco de um leitor desconhecido. O tal anônimo (o chamaremos assim), não satisfeito com a pequena pichação, ainda riscou alguns versos do poeta e escreveu outros, de sua própria autoria, no lugar. No primeiro segundo, confesso que fiquei um pouco chateada. Afinal, o livro era uma propriedade pública e, assim como pichações em muros e prédios, essas coisas não deveriam ser feitas. Mas, como as palavras que seduzem, os rabiscos me seduziram e decidi procurar mais pistas desse “arruaceiro literário” (o tal anônimo). Encontrei outros poemas marcados e todos, como constatou minha veia de Sherlock Holmes, falavam de amor.

Elementar, meu caro Leitor. Nosso vândalo era um apaixonado.

E comecei a pensar em como a poesia fala pelos amantes. Mais do que encantar aos olhos e ao coração, a poesia fala à alma. Aquela mesma alma que o poeta do meu livro disse que “estraga o amor” “porque os corpos se entendem, mas as almas não” (já adivinhou quem é?). Vai ver, fiquei pensando eu, é porque a única coisa que a alma entende é a língua do lirismo:

“(...) o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbedos

O lirismo difícil e pungente dos bêbedos

O lirismo dos clowns de Shakespeare”

E porque a poesia alimenta e liberta, como pássaros presos em uma gaiola, toda a nossa imaginação e todas as nossas expectativas. Aos olhos de quem lê, promessas vão se desenrolando e um mundo novo é descoberto. Terra à vista! – diria o português navegador. Que melhor palavra do que a palavra não dita? A palavra imaginada.

Escrita em papéis de caderno comum, em bilhetinhos secretos, a poesia alimenta paixões e é a música dos amantes. Você só rouba poesias por alguém que ama de verdade. Porque quando amamos de verdade só nossas palavras não são suficientes e é preciso a ajuda de especialistas: Mario Quintana, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes. Todos cúmplices do singelo delito.

O anônimo-apaixonado separou muitos poemas, entre eles um intitulado “Nu”:

“(...) Se nua, teus olhos

Ficam nus também;

Teu olhar, mais longo,

Mais lento, mais líquido.

Então, dentro deles,

Bóio, nado, salto,

Baixo num mergulho

Perpendicular.

Baixo até o mais fundo

De teu ser, lá onde

Me sorri tu´alma,

Nua, nua, nua...”

Se ele chegou a entregá-lo a alguém nunca poderei descobrir, se o amor era apenas platônico, impossível saber. O fato é que fiquei feliz em descobrir que ainda se sentem paixões através de palavras. Nunca saberei se essa pessoa, dona dos rabiscos, era homem ou mulher, se gostava de ler poesias ou apenas pegou o livro por acaso, se sofreu por amor, ou se escondeu atrás de inseguranças. Mas eu li todos os poemas marcados e senti como se estivesse me intrometendo no meio de um romance. Engraçado, não?

O poema que me inspirou essa tentativa de crônica foi Madrigal Melancólico. Na última estrofe, bem no rodapé da página, pronto para escapar de olhos desatentos, estava o singelo rabisco de que tanto falei:

“(...) O que eu adoro em tua natureza,

Não é o profundo instinto maternal

Em teu flanco aberto como uma ferida.

Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.

O que eu adoro em ti- lastima-me e consola-me!

O que eu adoro em ti, é a vida” ( Rabisco anônimo: "O que eu adoro em ti", é o jeito que me faz sentir especial.)

O livro, a propósito, só podia ser do melhor poeta: Manuel Bandeira, a quem Rachel de Queiroz chamou carinhosamente de O Bardo e de quem peguei emprestado alguns trechos dos poemas que estão aqui.