HOMENS DE BRANCO
*ver PS no final
Quando entrei na Unidade Seis daquele Hospital, estava em surto. Chorava, não dormia, não comia e qualquer ruído me irritava. As dependências da Unidade eram precárias: portas destruídas por cupins, fechaduras quebradas e as malditas janelas gradeadas a ferro, o que me angustiava e sufocava ainda mais.
Na primeira noite ingeri meia dúzia de pílulas ansiolíticas, soníferas, honoríficas... , mas quando o sono começava chegar, ouvia gritos estranhos, muito estranhos. Não conseguia definir a origem dos mesmos, só sei que alertaram meus sentidos. Saí pelo corredor até o portão, também de grade, chaveado, que separava a Unidade Psiquiátrica da Enfermaria. Gritei para os enfermeiros:
- Abram esta porcaria. Quero sair daqui. Alguém está sendo torturado. Preciso saber de onde vêm estes gritos.
Apareceu um homem alto, forte, cara redonda, negro e fechado. No alto da sua cara dura, a figura daquele enfermeiro me arrepiava:
- Vá deitar. É o Kiko que grita assim.
- Quem é o Kiko?
O enfermeiro, arrogante, olhou-me atravessado, dirigindo-se à enfermaria. Não era de muitas palavras, nem explicações. Voltei para meu quarto, com as orelhas atentas. Percebi que os gritos eram da mesma Unidade, mas fiquei imóvel, não levantei mais e também não dormi.
O plantão trocava às sete da manhã. Outro enfermeiro entrou no meu quarto, trazendo os remédios. Sorriu dizendo “Bom dia”. Era mais baixo, menos encorpado, cabelo crespo, pele escura. Mais simpático que o da noite, sem dúvidas. Viu meus sinais, puxou assunto. Aproveitei para esclarecer aquela dúvida que martelava na minha cabeça bagunçada pela insônia:
- Quem é o Kiko?
- Ah, o Kiko? Ele mora aqui há muitos anos. Fica no quarto 213. É autista. Tem trinta e três anos, mas mentalidade e comportamento de uma criança de quatro. Meu nome é Ademar, qualquer coisa me chama.
Sorriu, fechando a porta atrás de si, deixando-me só com minha curiosidade. Veio o café minguado: pãozinho com margarina, xícara de café com leite e uma maçã minúscula e enferrujada. Depois do desjejum, vesti-me às tontas, amarrei o cabelo e fui de fininho até o quarto 213. Fechado! Voltei e fiquei atenta a qualquer ruído vindo de lá. Eram umas dez horas, quando, novamente, ouvi gritos, falas, barulho de porta se abrindo. O movimento vinha do 213. Arrisquei-me e fui espiar. O mesmo enfermeiro que me medicou cedo triturava um coquetel de pílulas que misturou no café e ofereceu para um rapaz enorme que sentava vagarosamente na cama, devido ao tamanho e gordura, em posição de yoga e cara de bebê: era o Kiko, que pegou o café e tomou em duas goladas. Fiquei observando aquele enfermeiro calmo, atencioso, alimentando o Kiko, que pesava cento e poucos quilos, quase dois metros, mas sorria, falava e agia com sua cabeça autista de quatro anos. Ademar contou-me que cuidava dele desde que chegou no Hospital. A mãe vinha visitá-lo uma vez por mês; o pai sumira quando o menino era pequeno, ainda, e descobriram que era excepcional.
Kiko já tinha afinidade com aquele homem. Ouvia, obedecia, os dois se entendiam na linguagem, nos gestos: - levanta, toma o café, agora vamos para o banho... Sem resmungar, Kiko levantava com seus passos de urso e ia para o chuveiro. O enfermeiro Ademar dava as ordens. Ele obedecia:
- Tira a roupa, vai embaixo da água, pega o xampu, passa no cabelo. Toma o sabonete esfrega no sovaco, nas costas, na bunda, no pinto... Ao mesmo tempo trocava as roupas da cama, ensacava as roupas sujas, que levava para lavar na sua casa. Kiko só repetia:
- Xampu! Toma banho. “Ademá”!
Fiquei observando o enfermeiro em seu uniforme branco respingado, com toda a destreza dos anos de profissão, enxugando e ajudando o rapaz vestir-se. Limpo e cheiroso, o “gurizão” senta-se numa cadeira de balanço e brinca com um carrinho de madeira. Nunca tinha visto algo assim. Um homem de 33 anos, olhos, gestos, fala sorriso, tudo de bebezão. Deu-me vontade de pegá-lo no colo. Impossível!
Voltei para meu quarto, mas a imagem do Kiko fixou-se na minha mente, como cola adesiva. Passei a prestar atenção em tudo o que acontecia com ele. Os outros pacientes (drogados, alcoólatras, esquizofrênicos...) tinham a mania de lhe oferecer tudo que pedia:
- Todinho! Sorvete! “Pepis”!
A misturança de alimentos resultava em diarréia. Então, o enfermeiro Ademar entrava em ação. Trocava novamente a roupa de cama suja, banho, xampu, sabonete... E novamente o Kiko cheiroso! Às vezes isso acontecia três ou mais vezes ao dia.
À noite trocava o plantão e chegava o enfermeiro negro e sisudo, de poucas falas. Às vezes Kiko tinha crises, urrava, dava chutes, socos, quebrava coisas. Numa dessas noites ele não parava de gritar:
- Tira, tira solta, solta!
Olhei. A porta fechada! Nisso o enfermeiro sisudo saiu e Kiko parou de gritar. Logo pensei que o enfermeiro negro tinha-lhe aplicado uma injeção cavalar de calmante. Arrisquei perguntar:
- O que está havendo com o Kiko?
- O deixei mais à vontade. Ele estava numa situação que lhe causa muito desconforto. E me mostrou um par de amarras.
Compreendi. O plantão de enfermagem da tarde, gurias menos experientes na profissão, o haviam imobilizado para que não caísse da cama ou se machucasse com a agitação em que estava. Corri para o 213. Kiko estava sorrindo, com os joelhos dobrados, segurando as pernas com as mãos, tipo posição de yoga.
No outro dia contei tudo para o enfermeiro Ademar, que ficou triste e disse que de vez em quando faziam isso, mas que não era necessário, pois ele nunca precisou imobilizar seu bebezão, era uma questão de saber lidar com a situação.
Passei a admirar aqueles dois enfermeiros homens, que cuidavam do Kiko, cada um do seu modo, mas com carinho e dedicação. Um à noite, sisudo, mais prático e calado, mas experiente e confiante no que fazia. Outro de dia, afetuoso, comunicativo, calmo, equilibrado...
Ademar também era responsável pelos passeios do Kiko, que saía feliz de chinelos Ryder e boné, dizendo:
- “Passeá” de FIAT!
Voltava dos passeios, sereno, relaxado. Ademar levava o Kiko para ver o Rio Guaíba, o pôr-do-sol no Gasômetro, em Ipanema, entre o verde do Parque da Marinha.
Fiquei trinta dias na Unidade Seis daquele Hospital e nunca vi o enfermeiro Ademar de humor alterado. Com chuva, com sol, com tumulto ou calmaria, seu olhar, seus gestos, fala, comportamento, sempre estáveis.
Algum tempo depois estive novamente na Unidade Seis. O enfermeiro Ademar continuava lá: atencioso, tranqüilo, dedicado com os pacientes, que cuidava com uma vocação que muito pai não tem com os próprios filhos.
O enfermeiro negro e sisudo da noite, também. Do seu modo, mais fechado, mas sempre tranqüilo, correto, atencioso! Nunca esqueci daqueles dois homens, negros, incansáveis e atuantes dentro dos seus uniformes brancos de enfermeiros, profissão que até poucos anos era reservado somente às mulheres.
E o Kiko? Continua fortão, com seu andar de urso, sorriso de bebê. Mas agora havia ganho um frigobar no quarto e aprendeu palavras novas. Quando queria alguma guloseima, apontava para a geladeirinha dizendo:
- abri porta, abri porta!
Mas a chave do freezer fica no bolso do uniforme branco do enfermeiro Ademar, que tem a responsabilidade de alimentar o Kiko adequadamente, para evitar as desinterias intestinais, diarréias e outros desconfortos gástricos pela ingestão excessiva de “porcarias” que outros pacientes lhe oferecem.
Da amizade com o enfermeiro Ademar, descobri que tem uma família linda, mulher e duas filhas; é responsável pelos cuidados especiais com o Kiko, que trata com igual afeto. Atende os demais pacientes da Unidade Seis, que divide com outra técnica, geralmente de manhã. Faz plantões aos finais de semana, cuida de uma “pessoa especial” fora do Hospital e, agora, está fazendo cursinho para prestar vestibular no Curso Superior de Enfermagem da UFRGS, pois só tem o técnico.
O outro enfermeiro técnico, negro, sisudo, do plantão da noite, igualmente dedicado, soube que trabalha todos os dias no Hospital Militar, o que me fez deduzir que dorme noite sim, noite não. Assim consegue manter a esposa e quatro filhos.
Dois homens, com suas vidas individuais, mas ligados pelos mesmos adjetivos exigidos na profissão em que atuam: tranqüilos, carinhosos, afetuosos, dedicados.
É preciso muita vocação para mexer com roupas sujas de sangue, fezes, urina, expurgos. Dar banhos em criaturas debilitadas pela doença, velhice ou deficiências, todos carentes, querendo, exigindo cuidados especiais. E, ainda, conversar, entender, sorrir, fortalecer com palavras e gestos! Dar injeções, medicar (sem poder errar), ver morrer, sem se deixar abater.
São poucas e raras estas criaturas, homens, como Ademar e... Antônio (o negro da noite), com coragem, disciplina, disposição e vocação para vestir um uniforme branco e assumir, sem preconceito, tão honrosa profissão. Tanto isso é verdade que na maioria dos hospitais, apenas um terço (1/3) dos técnicos e auxiliares de enfermagem são homens. Enfermeiros graduados, menos ainda.
Tiro o meu chapéu para estes homens, negros, brancos, pardos... Todos de roupa e alma infinitamente brancas. Faço verso e poesia, me empolgo e até arrisco uma melodia, num gesto eloqüente de merecida homenagem desta humilde “paciente”, angustiada e impaciente na maioria dos dias.
*PS: este texto foi selecionado/editado no Concurso HISTÓRIAS DE TRABALHO, 14ª Edição, 2007, realizado pela SMC aqui de Porto Alegre-RS.