Uma Crônica Alegre
Jade morreu. Triste, a morte.
Em minha crônica, “Metida à Besta”, conto como a cachorrinha chegou até nós. Minha cunhada, Sônia e o filho, Arthur, sua matilha primeira, vieram nos visitar à noite. Coincidiu de estarem próximos de nossa casa quando souberam. Ficamos conversando sobre ela. Triste, falar dela, morta.
Então começamos a lembrar dela, viva.
De quando, morando no apartamento dela, e dormindo em seu quarto, a danadinha amanhecia aquecendo-lhe os pés, encolhida a um canto da cama, apesar de saber-se proibida de subir.
Lembramos que ela adorava frutas e era capaz de devorar um mamão formosa em minutos. Depois, ficava meio desarranjada. Como ela passava a maior parte do tempo sozinha, Sônia evitava dar-lhe frutas por isso. Uma tarde, ao chegar do trabalho, encontrou a fruteira, que ficava sobre a geladeira, caída no chão. À sua volta, sementes de mamão. Era só o que havia sobrado.
Quando morou com meus sogros, antes de soltá-la do canil eles recolhiam todas as mangas caídas no quintal. Depois, disputavam para ver quem tinha o ouvido mais apurado e a ação mais rápida ao ouvir o baque seco das frutas caindo no chão.
Ela veio pra cá na temporada das mangas. Meus vizinhos têm alguns pés, plantados rente à nossa cerca. Ela pedia as frutas. Nos chamava para apanhá-las para ela.
Jade era estabanada. Em sua alegria de eterna criança, apesar de, em idade canina já ter mais de 60 anos, pisava nos nosso pés, sujava nossas roupas com sua boca sempre cheia de baba. Caçava calangos e os comia, praticamente inteiros.
Ela adorava andar de carro. Não podia ver uma porta de carro aberta que se enfiava para o banco traseiro. Lembrança dos passeios em que deixava o pequeno apartamento e seguia com a cara na janela, a língua de fora, balançando ao vento. Uma vez, invadiu o carro de um amigo nosso, enquanto conversávamos à porta. Na segunda-feira, ia levar as pequenas ao veterinário e nem pretendia levá-la, mas ela colocou aqueles olhos compridos e tristes em mim, não resisti. Deixei-a aboletar-se no banco traseiro. Para ela, bastava: quando voltei com a coleira, já ia descendo, satisfeita.
Logo que veio para nossa casa, costumava pular em nós. Alexandre Rios, autor de bons livros sobre adestramento, ensinou um truque para fazer o animal parar com este hábito: segurando-o pela patas, fazê-lo andar pra trás, sempre brincando e dizendo palavras carinhosas. O cachorro, chegando à conclusão de que você é um completo idiota que não sabe brincar direito, pararia de pular em você. Deu certo com todos os cães em que tentei. Com a labrador de minha prima, bastou uma vez. Pois com a Jade, foram necessárias várias. Ela simplesmente esquecia.
Jade tinha uma paciência de Jó com nossas cachorrinhas cofaps. Anita, a magrela espevitada, parava embaixo de sua bocarra e latia-lhe, furiosa:
- Gentalha! Gentalha!! (isso é a tradução simultânea)
Jade a ignorava. Mesmo quando surpreendia alguma delas roubando-lhe os biscoitos, ossos e até a comida, ela apenas aproximava-se solene, sem nunca partir para a agressão ou revidar às rosnadas ou latidos das abusadinhas.
Ela gostava de água. Na primeira vez que viu o córrego, no fundo de nosso quintal, lançou-se às águas e ficou investigando. Uma folha passou boiando, ela seguiu, outra folha passou e ela, esquecendo-se da primeira, seguiu a segunda, e assim sucessivamente, até ser surpreendida pela falta de chão num trecho mais fundo. Meu marido, temeroso que ela se afogasse, acabou caindo na água, com o bolso cheio de coisas: carteira, controle remoto do alarme e do portão, celular... Apenas para vê-la recuperar o controle da situação e sair sozinha de onde estava. Ao contar aos colegas, eles riram:
- Mas por que não esvaziou os bolsos, antes de pular atrás dela?
- Sei lá! Ela é meio burrinha, poderia se afogar.
E eles, impiedosos:
- É! Inteligente é o dono!
É com essas últimas lembranças que quero despedir-me do doce cachorrão. Passou apenas poucos meses em nossa casa, desde o carnaval até ontem, mas como todo adorável xerácu-benga, deixou lembranças boas e muita saudade.