LAMBE-LAMBE
A criatura marcava uma data especial e quando essa data chegava, o costume era acordar cedinho, ansiosa, contando as horas, os minutos e os segundos. Passava até a fome. Tinha que tomar um banho especial, tipo banho de noiva, vestir uma roupa nova, passar horas em frente ao espelho tentando compor uma bela figura.
Os pais se preparavam também, mudavam a rotina. Eram atores coadjuvantes, mas se comportavam como protagonistas.
Os vizinhos faziam perguntas, afinal todos da rua sabiam do acontecimento importante.
Caminhando em direção ao centro da cidade, ficávamos tão orgulhosos e não víamos a hora de chegar ao local.
Uma avenida longa e larga que terminava no mercado central, cheio de frutas, cestos, bancas de carne, outras de peixe. Tinha de tudo, até pequenas lojas de peças e acessórios para automóveis e casas especializadas em artigos para montaria. Tinha cheiros fortes misturados com suaves aromas de jasmins que eram vendidos principalmente para as igrejas e para a comemoração do Dia de Finados. Tanta gente conversando, perguntando preços, brigando, namorando, bebendo cachaça em bares.
Havia um espaço no meio da avenida, entre aquilo tudo, numa espécie de canteiro. Uma fila de saletas abertas, onde havia espelhos quadradinhos em molduras de vermelho aguado, pentes de plástico vermelhos, amarelos e azuis.
Veja agora uma lista para ir imaginando a paisagem: frascos de perfume, pó compacto, batom vermelho arroxeado, cortininhas de chita mal colocadas, penduradores de roupas, paletós encaspados, gravatas amassadas, vestido de noiva e uma plaqueta com uns números que poderiam ser trocados por outros, conforme as datas.
Do lado de fora havia, uma de cada lado da saleta, molduras envidraçadas cheias de retratos de pessoas. Uma moldura estava de cabeça para baixo.
Dentro, sentado em uma cadeira, ou fora da saleta, de pé e olhando nos olhos de quem passava, havia um homem convidando para entrar. Mas a saleta era tão pequena, e com o seu principal conteúdo colocado bem no centro do espaço, mal caberia três pessoas. Se estivessem os três sentados, quando um quisesse se levantar, os três tinham que fazer o mesmo ou ficariam ali ensaletados.
E a gente esperando o momento de se postar frente à máquina, como chamávamos, de tirar retrato. Ensaiávamos a pose enquanto o retratista se metia por debaixo da cortina preta da caixa formidável. Tanta ilusão por uma foto 3x4 para matricular-se na escola. Mas valia a pena, naqueles poucos minutos éramos felizes.
Uns retratistas eram conquistadores e demoravam mais e ajeitavam mais os ombros e o rosto das retratadas, repetiam a operação e, depois, cheio de autoridade, dizia: Vou revelar no estúdio escuro.
O estúdio ficava atrás da cortina de chita esvoaçante do vento da maré que enchia o ar de cheiro de caranguejo. Um dia o vento deu tão forte e equilibrou no alto a rala cortina.
Deu para ver o segredo: um tamborete alto com uma bacia de alumínio cheia de água suja onde o profissional da arte afogava as tiras de fantasmas. Era mergulhando, esfregando e olhando. Fazia tanto isto que a bacia ficava seca e ele passava a lamber os retratos.
Mostrando ao retratado a sua obra, o retratista afirmava: Veja como ficou bonito!
Entrou um homem totalmente banguelo e insistentemente risonho. Vestiu o paletó, colocou a gravata, passou várias vezes o pentinho torto nos cabelos curtos. Sentou-se na cadeira e olhando o passarinho, disse: Bata uma chapa bem bonita de eu. Vou tirar sorrindo que é para mandar para minha noiva em Sun Pálo.