Marias
As Marias são fonte de inspiração. A partir da disposição do cronista de abertura ao outro, ou melhor às outras - essa alteridade que tempera magistralmente o cotidiano e lhe confere incomparável sabor. E que alimenta a peculiaridade do artista.
Na alteridade se dá o milagre. Não a exemplo desses milagres soberbos que, para confirmação requerem milhares de dólares pagos pelo Vaticano a médicos e especialistas que vasculham laudos, exames, tomografias e elaboram intrincados cálculos para verficiação da suspensão das leis da física e química. Não! Trata-se de uma espécie de milagre humilde como o tremeluzir da chama domesticada da vela mas que, paradoxalmente, provoca uma explosão de sentimentos e emoções insuspeitada em favor de curas espirituais e fortalecimento da alma na têmpera dos estreitamentos e intimidades a alterarem definitivamente a natureza dos corações e cosmovisões particulares obstinadamente encerradas em si mesmas.
Maria, constrangida, envergonhada, entre lágrimas, contou a sua ouvinte dedicada e integralmente submergida nas ondas de seus estremecimentos intensificados pelas lembranças doloridas, que saiu da Bahia, despreparada para o frio do Planalto Central, enxotada pela repulsa dos filhos ao apoio que dedicou a uma só filha, desditada e oprimida pelo próprio pai. Maria, pobre, desvalida e no entanto grande, destemida. A filha menor, que sofre de intermitentes ataques de epilepsia, foi abusada pelo pai sem nem mesmo poder consentir ou resistir, enquanto o corpo arfava e trepidava durante um desses ataques.
De repente, a menina apareceu grávida, sem saber contar como nem quando emprenhara. O Juiz, zeloso, determinou o exame de DNA logo que o feto atingisse seis meses; a cruel constatação?, o neto de Maria é irmão de sua própria mãe - o pai de sua filha, pai do próprio neto. O pervertido foi preso e os outros filhos acusam Maria de ser a causadora do cativeiro de seu "pai"... Veja que contradições absolutas em absurdo! Maria chegou a Brasília com o neto nos braços e a filha passando pelo tormento de ser mãe sem saber como e flagelada por uma compulsória rejeição ao fruto de suas próprias entranhas. Maria agora é avó e mãe de seu netinho que passa frio nas noites de sete graus da Capital Federal. Maria tem braços e mãos que limpam minha casa e eu, ai, eu..., impotente em braços e mãos insignificantes no sustento de Maria na dor. Coragem não tenho, muito pouca e frouxa para suprir a vontade gigante de Maria.
E eu cá, curada de meus queixumes fúteis e confrontada com minha pusilanimidade, desenganada de minha altivez, cá estou em ais e, recolhidas minhas glórias vãs, elevo uma prece a Maria pelas Marias.