Domecq
Mal cheguei, já entreguei a monografia e calculei o tempo que ficaria à-toa: três horas. Bem que eu podia, pensei, ir à churrascaria que sempre vou, mas, não tinha fome. A não ser que fomentasse o apetite tomando alguma bebida. Sei lá, uma pinga de raiz como a de seu João, uma cerveja... Cerveja não, estufa muito. Pinga artesanal também não tem na Capital...
Lembrei-me do Domecq. Éder toma-o, diz que é bom e a serventia varia de concomitar dicotômicos a aclarar textos ambígenos e defectíveis. Taí, vou beber um domecq. Vixe! Deve ser como engolir fogo ou soda caustica... Uma vezinha na vida outra na morte, que mal faz... Além do mais um homem deve experimentar de tudo na vida, diz o adágio.
Escolhi um boteco ali mesmo, perto da Faculdade, e entrei. Vazio. Estudantes em férias, área deserta. Veio-me um balconista – certamente conterrâneo - sorriso de orelha a orelha, cabecinha quadrada e disse “pois não”. Perguntei se “o amigo vende domecq” e passei a vista entre uma infinidade de litros e garrafas quase cheios, quase vazias e marcas diversas. Flagrei-lhe – autêntico exemplar dos cariris apesar de oficialmente extintos - uma banda da cara, a oposta a mim, e mal continha a musculatura no lugar, ameaçando desatar o riso; em ampla conivência com um do caixa. Esforçou-se, engoliu o casquinar e respondeu que não vendia conhaque e se servia fanta uva. Boiei até cair a ficha... Dei séria olhada panorâmica e saí fora, a matutar.
Certamente concluíam que eu não tinha porte para o tal conhaque. Ou será que o GM Capetão tinha razão – este se diz meu amigo - quando me disse, na lata, que tenho cara de baitola? Onde já viu insultar um cearense assim? Eu bem que podia ter arranhado a barriga dele, com meu punhal de cabo encastoado, só para impor respeito... Não digo furar, enfiar... Seria ignorância, malvadeza e, felizmente, Deus não me deu tal coragem.
Escolhi outro bar, depois de ensaiar varias vezes como fazer o pedido e não ser ridicularizado novamente: palavras apropriadas, tom de voz, postura... Tanta complicação para uma atitude tão simples, corriqueira, ao pé de cana. Entrei pisando firme, rocei a barriga no balcão, segurei a respiração, a coluna em linha reta, levei a mão à altura do queixo, toquei os cantos da boca com o polegar e o indicador, estufei os beiço, cocei o pau, arrumei o saco e falei grosso, afinado: “Um domecq”. Confesso que pensei em dar uma cusparada no piso à título de reforço, mas desisti.
Este balconista, também conterrâneo, botou fé e se aperreou até encontrar o conhaque dentre tantas bebidas. Sobre o balcão jogou um copo americano, destampou o litro e glut-glut-glut... “Acho que chega”, falei sem me preocupar com a afinação da voz ou coerência em relação ao anterior modo de agir.
Sabe que gostei do destilado... É suave, bem palatável e me lembrou uísque. No segundo gole, a dose inteira repousava no estômago sem grandes estragos. Evitei conversa, botei dez reais em cima no balcão, o rapaz recolheu e me devolveu seis.
Rumei ao metrô Paraíso sem conseguir tirar da cabeça àquela primeira situação do primeiro bar. Cara de baitola é uma porra, pensava. “Aqui é só para pessoas especiais”, disse-me um dos homens de preto do Metrô impedindo-me de avançar, inconscientemente, no espaço reservado a idosos, deficientes, etc. Escolhi uma fila ali perto, ao lado. Quanta demora até conseguir embarcar! Total falência do transporte público paulistano.
Trem lotado e um bafo quente - muito quente - e um esvaecido fungado bem no meu cangote. Pela quantidade de ar, só podia ser homem.
Era um militar do exército pelos seus quarenta e cinco anos a me colar por atrás; usava a farda verde - que me parecia extremamente quente – uma camisetinha com um sebasto verde-vivo em volta do pescoço. “Deve estar assando de calor”, imaginei.
Metrô lotado, como já disse, ele acoplado a minha retaguarda - o que não tem remédio, remediado está - aproveitei e arregacei minha camisa e encostei a pele – meu cotovelo - no casaco do adail, creio, com a mera finalidade de sentir a temperatura. Não é tecido, como aparenta; é uma espécie de encerado e é geladinho... Satisfiz a curiosidade e dei-me a pensar em nada.
Entre a São Joaquim e Liberdade, percebi-me encaixado demais e que algo latia na bunda; me fui virando, sem sobressaltos. Enfim, quase cara a cara com o camuflado de selva. No peito direito uma tarjeta como o nome dele e no esquerdo, o brasão do exército nacional. Cara enigmática que me remeteu ao sargento Cássia Éller. Tentei me certificar, mas não consegui ver aliança. Solteirão, certamente.
Desembarquei na Sé e trombei com um PM que descia a escada, às carreiras, para embarcar no trem do qual eu desembarcara. “Está atrasadíssimo para entrar no bico”, pensei. Como tinha o rosto azul! Azulzinho de marca de barba cerrada! Cara de macho mesmo... Era assim que eu queria ser. E não esta minha cara lisa que jamais pariu um fio de barba. Logo barba que é prova concreta da produção de hormônios masculinos.
O que se vai pensar de quem não produz testosterona? O Capetão é que estava certo e, brincando, me disse a verdade. Tivesse eu uma cara azul, queria ver se duvidariam de mim. Se bem que o militar do exército tinha nítidos sinais de barba fechada, o braço peludão... Involuntariamente, prendi a língua no céu da boca e atirei-a contra os dentes, um muxoxo, talvez...
Desci na Estação República, caminhei alguns metros e sentei-me à mesa na Trilha Gaúcha onde rabisquei os pontos principais desta crônica.