Hora do óbito
Olhei para os ponteiros. O menor estava junto ao dez e o maior deslizava ponteiramente para o vinte. Sabe, acho que nós e os ponteiros temos algo em comum. Ficamos girando, girando indefinidamente. Não gostamos muito quando algo nos atrasa o avanço ponteiriço com medo que acabe a corda; mas não vemos a hora que a hora continue segundo a segundo, tranquilamente sem alarmes. O tic-tac — que não é o do meu coração — dá o tom, marca o passo e eu passo... passo a passo disfarçado de tempo antes que o tempo — sempre pontual — possa me encontrar na hora marcada. Isso não importa. O que importa é a porta, é a janela... alguma visão que seja benfazeja tão estonteante o quanto antes; pois antes, nada estonteava-me além de nausear-me a seriedade. E o que possa existir de mais sério do que perceber que o tempo acabou? Que a hora já foi junto com o tempo. Que nada mais restou do que um relógio parado sem o pulso que um dia pulsou a cada segundo seguido de outro segundo... Esse ser amorfo, fluídico em conluio com os ponteiros de um relógio — não importando se é de marca importada ou se é falsa comprado em um camelô de qualquer esquina — esse mesmo relógio, que já teve o hábito de marcar o óbito sem atrasos... organicamente já demarcou a hora de nascimento que é a hora do esquecimento que o tempo já passou.