O POETA ILETRADO
Conheci Joel das Trovas no Boteco do Enéas, bar de subúrbio, desses que vendem um bom chope e um ótimo cafezinho como o que o pedi.
Uma figura magra e falante me chamou a atenção pelos versos que dizia, em voz alta, dirigindo-se a um cidadão de douta aparência sentado ao fundo do bar:
“Dizes-me: vagabundo, mas em resposta te dou
Rimas e um Bem profundo da flor que em mim brotou.
Flor-de-compreensão, flor-de-tolerância,
Flor-de-poder-lidar com o amor e a ignorância”.
O cidadão a quem Joel se dirigia era o Dr. Maurício, conhecido Químico-Farmaceutico que não suportava os versos simples do poeta, dizia faltar-lhes retórica.
Joel, quando jovem, largara os estudos para trabalhar e manter a mãe e as duas irmãs. Promessa feita ao pai, já moribundo, em seu leito de morte. Durante doze anos dedicou-se a cumprir a palavra dada. As irmãs casaram-se e pouco tempo depois sua mãe faleceu. Sozinho, Joel entregou-se à boemia e fez da poesia sua mais fiel companheira. Andava de bar em bar e, à custa da trova, até ganhava um trocado por recitá-las.
Dr. Maurício, ao contrário do trovador, nunca passara dificuldades; havia freqüentado as melhores escolas da capital, formara-se com louvor na Universidade, mas era distímico, carregava a doença que é uma forma de desordem do humor da depressão e que se caracteriza pela falta de prazer. Talvez por isso não tivesse amigos, refugiando-se no Boteco do Enéas onde era sempre bem tratado, apesar da cara fechada.
Costumava gozar do poeta dizendo: “Eis aqui um reles palhaço que enche de asneiras os nossos ouvidos”. E dava-se a rir.
“Se de palhaço me chamas pensando em ofender,
Quanta honra me daria com “Piolim” parecer.
Faço versos de alegria, ilusão e sentimento,
E peço neste momento um viva para o “Arrelia!”
Replicava Joel, apontando para o Doutor que vermelho de raiva, levantava-se e ia embora. Piolim e Arrelia foram dois grandes palhaços brasileiros. O bar todo aplaudia.
Passados já quinze anos, Joel, agora escritor de fama internacional, levado por amigos para S. Paulo, conheceu um jovem cantor que ao musicar e gravar suas poesias estourou em todo o país fazendo o maior sucesso. Escrevendo livros de auto-ajuda já posou até ao lado do Papa. O iletrado poeta iniciou a fama e a fortuna com a arte de rimar simples palavras e com a grandeza da emoção na poesia.
Dr. Maurício, mais ranzinza e infeliz que dantes, continua freqüentando o Boteco do Enéas e agora implica com Alvinho, o engraxate, que batuca e cantarola enquanto dá brilho nos sapatos dos freqüentadores do lugar.