Nem biografia
nem memórias
Não, não pensem que vou escrever minha biografia. Atento à sua inutilidade e ao descomunal tamanho da sua insignificância, não perderia tempo em escrevê-la.
Porque nós, escribas, do dia a dia, vivemos a escrever sobre deus e o mundo, muita gente acha que também temos a obrigação de revelar, publicamente, quem e como somos. Não é bem assim.
Alguém afirmou, e com absoluta razão, que "quem escreve sobre si mesmo mente muito." E eu não pretendo engrossar a fileira dos que desfilam, mentindo, em suas auto-biografias.
Mas insistem, dizendo que, para escolher, existem ainda dois tipos de biografias: a biografia autorizada e a não autorizada.
"Por que não a biografia autorizada"? - me perguntam. Primeiro porque jamais imporia a um amigo tamanho sacrifício. Segundo porque nenhuma das duas biografias me atraem; mesmo que tivesse - e não tenho - um exuberante e atraente curriculum vitae para mostrar.
Sabem todos, e isso me basta, que levo uma vidinha singela e boa. Não diria igual a de qualquer brasileiro. Isso não é verdade. Há milhares de patrícios por aí mastigando o pão que o demo amassou. Não é o meu caso.
Incluo-me entre os brasileiros privilegiados.
Senão, vejamos: casei bem; tenho ótimos filhos, noras e netos; tenho um carro e casa própria; faço as três refeições diárias; e tenho grana suficiente para não precisar tomar empréstimos, nem empenhar a aliança.
Tenho ainda centenas de livros à minha disposição; e, por sorte, uma pena romântica, viril, honesta e fértil.
Opa! De repente estarei contrariando o que prometera acima, ou seja, de jamais escrever minha biografia.
Fico, pois, por aqui. Nem mais um linha sobre a vida privada e pública deste cronista de meia-tigela.
"Escreva, então, suas memórias", aconselham-me amigos mais generosos. Memórias? Sem essa!
Neste particular, estou com a querida conterrânea Rachel de Queiroz que, um dia, declarou abertamente não gostar de memórias. Recordem o que, em Tantos Anos, ela escreveu:
"Você sabe que não gosto de memórias. Nunca pretendi escrever memória nenhuma.
É um gênero literário - e será literário mesmo? - onde o autor se coloca como personagem principal e, quer esteja falando bem de si, quer confessando maldades, está na verdade dando largas às pretensões do seu ego - grande figura humana ou grande vilão."
E sobre as confissões, indispensáveis nas memórias de alguém, disse Rachel: (...) "há coisas na vida de cada um que não se contam. Eu, por exemplo,`nem às paredes do quarto contaria`, como diz o fado."
As memórias e a biografia da saudosa escritora cearense - todo mundo sabe disso - estão nos seus romances e nas entrelinhas das centenas de crônicas que ela escreveu na sua gloriosa passagem por este velho planeta.
Portanto, nem biografia nem memórias, por mais interessantes - e não são - que elas fossem.
Para não parecer que sou um sujeito ranheta, até me arriscaria a deixar pros meus herdeiros o meu auto-retrato.
Como um dia o fez Carlos Drummond, num singular diálogo com o seu espelho.
Ah, mas o Drummond tinha o que dizer de si, levando seus milhares de leitores a se deliciarem com seu delicado, irônico e recatado perfil...
E eu? Nada, absolutamente nada, tenho a dizer de mim...
nem memórias
Não, não pensem que vou escrever minha biografia. Atento à sua inutilidade e ao descomunal tamanho da sua insignificância, não perderia tempo em escrevê-la.
Porque nós, escribas, do dia a dia, vivemos a escrever sobre deus e o mundo, muita gente acha que também temos a obrigação de revelar, publicamente, quem e como somos. Não é bem assim.
Alguém afirmou, e com absoluta razão, que "quem escreve sobre si mesmo mente muito." E eu não pretendo engrossar a fileira dos que desfilam, mentindo, em suas auto-biografias.
Mas insistem, dizendo que, para escolher, existem ainda dois tipos de biografias: a biografia autorizada e a não autorizada.
"Por que não a biografia autorizada"? - me perguntam. Primeiro porque jamais imporia a um amigo tamanho sacrifício. Segundo porque nenhuma das duas biografias me atraem; mesmo que tivesse - e não tenho - um exuberante e atraente curriculum vitae para mostrar.
Sabem todos, e isso me basta, que levo uma vidinha singela e boa. Não diria igual a de qualquer brasileiro. Isso não é verdade. Há milhares de patrícios por aí mastigando o pão que o demo amassou. Não é o meu caso.
Incluo-me entre os brasileiros privilegiados.
Senão, vejamos: casei bem; tenho ótimos filhos, noras e netos; tenho um carro e casa própria; faço as três refeições diárias; e tenho grana suficiente para não precisar tomar empréstimos, nem empenhar a aliança.
Tenho ainda centenas de livros à minha disposição; e, por sorte, uma pena romântica, viril, honesta e fértil.
Opa! De repente estarei contrariando o que prometera acima, ou seja, de jamais escrever minha biografia.
Fico, pois, por aqui. Nem mais um linha sobre a vida privada e pública deste cronista de meia-tigela.
"Escreva, então, suas memórias", aconselham-me amigos mais generosos. Memórias? Sem essa!
Neste particular, estou com a querida conterrânea Rachel de Queiroz que, um dia, declarou abertamente não gostar de memórias. Recordem o que, em Tantos Anos, ela escreveu:
"Você sabe que não gosto de memórias. Nunca pretendi escrever memória nenhuma.
É um gênero literário - e será literário mesmo? - onde o autor se coloca como personagem principal e, quer esteja falando bem de si, quer confessando maldades, está na verdade dando largas às pretensões do seu ego - grande figura humana ou grande vilão."
E sobre as confissões, indispensáveis nas memórias de alguém, disse Rachel: (...) "há coisas na vida de cada um que não se contam. Eu, por exemplo,`nem às paredes do quarto contaria`, como diz o fado."
As memórias e a biografia da saudosa escritora cearense - todo mundo sabe disso - estão nos seus romances e nas entrelinhas das centenas de crônicas que ela escreveu na sua gloriosa passagem por este velho planeta.
Portanto, nem biografia nem memórias, por mais interessantes - e não são - que elas fossem.
Para não parecer que sou um sujeito ranheta, até me arriscaria a deixar pros meus herdeiros o meu auto-retrato.
Como um dia o fez Carlos Drummond, num singular diálogo com o seu espelho.
Ah, mas o Drummond tinha o que dizer de si, levando seus milhares de leitores a se deliciarem com seu delicado, irônico e recatado perfil...
E eu? Nada, absolutamente nada, tenho a dizer de mim...