A vida doméstica não tem salto alto
A vida doméstica não tem salto alto.
Não sou do tipo que odeia o domingo à noite porque no outro dia será segunda-feira, mas aquele domingo começou com cara de uma brava segundona, principalmente pelo fato de ter dormido apenas três horas em decorrência de uma deliciosa festa de formatura de uma amiga; estar com cheiro de whisky com guaraná, com uma leve zonzeira típica de quem há muito não bebia três doses grandes de destilado e com os pés pouco recuperados de tanto dançar.
Tendo dois filhos pequenos já era de se esperar que meu domingo ficasse bem chumbado, mas me garanti logo às sete e meia da manhã com uma cápsula de chá verde e uma grande dose de chá preto e guaraná em pó, dessa forma, com toda cafeína que meu cérebro conseguiu absorver, uma hora depois já me senti acordada.
De posse de juízo perfeito, ou quase, ajeitei a casa que estava um tanto bagunçada por conta da noite passada. Olhando rapidamente pensei “tenho certeza que deixei apenas duas crianças e uma avó quando saí, como puderam fazer tanta bagunça?” Lavei a louça, preparei o café da manhã para as crianças, a avó foi embora e fiquei naquela manhã de domingo numa intensa atividade doméstica. Já pelas 11 da manhã meu filho de cinco anos questiona:
-Por que o pai ainda está dormindo?
-Porque fomos numa festa ontem e chegamos às quatro e meia da manhã, ele está cansado.
-Então porque você já levantou? Você não foi também?
- AH! Mas a mamãe está acostumada a levantar cedo. (Mentira deslavada, pois os que me conhecem sabem o quanto odeio levantar cedo, mas, como explicar para uma criança dessa idade a frase que diz “Mãe é mãe, paca é paca?”)
Já no final do dia, um soar do telefone interrompe meus planos de tomar um bom banho e deitar mais cedo para recarregar as pilhas e acordar com pique para a segunda-feira. Era o marido da funcionária doméstica que me auxilia diariamente das 07h00min as 15horas, informando que esta havia sofrido um acidente e quebrado um braço, estando com atestado inicial de 30 dias de afastamento.
“Puxa! Vai ser A segunda-feira!” Férias escolares, tempo chuvoso, falta de empregada e alguns pacientes para atender. AH! Estava com meu carro na oficina, necessitando revezar com o marido o transporte. Ao menos uma faxineira iria me ajudar. Ao desligar o telefone agarrei o pote de cápsulas de guaraná e virei duas logo de cara para garantir mais algumas horas de superpique doméstico.
Até me assustei com a velocidade adquirida depois das cápsulas, corri para a máquina de lavar roupa e num súbito ataque de “vou resolver isso agora” deixei toda roupa lavada e colocada no varal, garantindo que no dia seguinte a faxineira passaria tudo.
No último instante de por roupas no varal, lá pelas 11h30min da noite, escuto um “Miau, miau” muito próximo, olho ao redor e constato que um bichano cinza tinha feito minha churrasqueira de berço e que meu cachorro estava “nem aí” para o fato.
Bom, eu é que não ia arrumar confusão àquela hora; apaguei as luzes e entrei em casa para meu merecido banho.
- Querido, tem um gato na churrasqueira.
- Deixa lá, amanhã de manhã se estiver lá à gente dá um jeito.
Obvio que o tal “a gente” seria a Agente mãe.
Deitei-me já passando da uma da manhã, peguei rapidamente no sono, sonhando com deliciosas 5 horas de sono. Mas, de fato aquele não era um final de semana para os fracos e então às 4 da manhã acordo com um barulho vindo da sala de TV, parecia alguém derrubando minha persiana e batendo na janela. Considerando as horas e o sono já acumulado, saltei com o coração pulsando nas bochechas, tamanho o susto ocorrido. Acendo a luz do quarto, chamo o marido que dormia profundamente e nada ouviu, ao levantarmos e acendermos todas as luzes, eis que constatamos que o tal barulho tinha sido provocado por um gato... Sim! Aquele da churrasqueira! Ele entrou pela janela da cozinha que sempre fica aberta e desesperou-se a se ver preso no escuro dentro de casa.
Bom, passado o susto e depois de uma briga para tirar o gato da persiana (não sobrou uma só paleta inteira!) e coloca-lo na rua, voltamos a dormir, se é que podemos chamar um sono de uma hora de sono de fato; um cochilo seria o mais adequado.
Ainda rezei em agradecimento por ser apenas um gato e ter como prejuízo apenas a quebra da persiana. Nesses tempos de violência, a invasão doméstica por um gato é uma benção!
Considerando todos os fatos, fiz os arranjos necessários e a segunda-feira transcorreu sem maiores transtornos até a exata hora de 19h e 20minutos quando já fechando as portas de meu consultório meu celular toca e se pudesse ter em seu chip um comando inteligente, com certeza o toque viria assim: “ligação de sua mãe sem tempo para acabar, deseja atender ou se matar?”.
Mamãe iniciou seu longo discurso sobre alguns conflitos familiares e me dirigi para casa “toda ouvidos ” e dentro das pausas possíveis participando da conversa. Ao chegar, cumprimentei as crianças e sinalizei ao mais velho que aguardasse alguns minutos para receber minha atenção, pois, “mamãe estava ao telefone”, tentei ao que me recordo encerrar a conversa logo depois, entretanto, a necessidade de minha mãe falar não possibilitou essa escuta e assim o tempo foi passando.
Já completados 30 minutos de ligação e sem perspectiva de encerramento breve da conversa, joguei os sapatos de salto para o canto da mesa, me recostei na porta da lavanderia com a cozinha para tomar um ar e constatei que a faxineira estava se preparando para ir embora.
Um tchau silencioso ela fez ao sair. Tranquei a porta e vejo que a minha antiga sala de TV, hoje um espaço que eu nomearia como “espaço das possibilidades infinitas da bagunça”, já se encontrava em situação semelhante a campo minado. Caso eu desejasse caminhar até a televisão, no mínimo pisaria em carrinhos de ferro, bichinhos pré-históricos de borracha, peças de jogos de encaixe ou talvez deixasse aleijado algum boneco Max Steel ali espalhado, isso sem falar que poderia atingir algum biscoito de polvilho que tinha dado ao meu filho menor para distraí-lo enquanto a ligação continuasse e daí, pobre do tapete.
Retornei ao meu antigo posto ao lado da porta e vejo que uma pequena aranha se instalava ali para começar seu trabalho de tecer teia. Lembrei-me da aranha do filme “A menina e o porquinho” que era uma aranha que tecia palavras.
O filho maior já cansado da espera que já se completava uma hora, começou seu M.V.C.M.T. (movimento de vingança contra mamãe ao telefone), correu para meu quarto, aumentou o som que tocava no CD ( um rock clássico do The Doors ) e pulava freneticamente na cama. O filho de um ano ouvindo a música correu atrás para dançar junto, mas, ao se deparar com as portas do armário da pia destrancadas, parou e me lançou um olhar de súbita alegria, ajoelhou-se começando a tirar as panelas e tampas , estabelecendo inicialmente um “pequeno” soar de metais batendo, quase acompanhando o rock que vinha do quarto.
Lancei um olhar ao relógio, mais vinte minutos tinham se passado, olhei o celular, que nessa altura do campeonato já estava suado e a tela embaçada. Já nem sabia mais que rumo à conversa tinha tomado e acredito que minhas respostas estavam ligadas ao piloto automático.
A aranha já tinha feito um bom pedaço de teia no canto de minha porta e voltou-me a lembrança do filme e nessa hora pensei: “Ela vai escrever a palavra paciência”.
Num rápido movimento vejo o litro de óleo nas pequenas mãos de meu filho que não tendo mais panela nem tampa para retirar da pia, buscava diversão nos temperos. Corri a tempo de evitar tragédia maior, considerando que a cozinha tinha sido lavada poucas horas antes. Ele gritou em sinal de protesto, eu o acalmei pegando no colo e tentei encerrar a conversa, mas não obtendo sucesso, o retornei ao chão e dei um copo de suco.
Nesse momento o filho revolucionário já havia tomado duas tigelas de sorvete, feito uma “varredura” na geladeira, sabendo que eu não reagiria muito, pois estava ocupada ao telefone. Sinalizei para ele “vou cortar seu pescoço depois”, mas ele nem viu, correu para sala da bagunça e ouvi que mais um cesto de brinquedos estava sendo explorado.
Impressionante quanto uma aranha consegue tecer em noventa minutos! A paciência com a aranha se esgotou, então peguei uma vassoura próxima e num péssimo equilibrar de uma única mão, acertei a aranha e também o varão de madeira que segura uma pequena cortina que fica sobre a janela da cozinha e a porta. Tudo veio ao chão e ao pegar o varão para encostá-lo num canto qualquer, descubro meu caçula se agarrando na outra ponta e puxando bravamente o varão em sua direção.
Vi-me como num cabo de força, mas já quase sem forças, soltei a madeira e deixei ele se equilibrar com ela. Um garoto de aproximadamente 90 centímetros de altura contra um varão de um metro e meio seria uma briga boa.
Tentando desligar o celular pela última vez, visualizo uma cena que corrobora com todos os estudos psicanalíticos já realizados sobre o poder do falo na humanidade.
A criança ali em minha frente lutava incansavelmente para manter o varão verticalizado e nessa hora comecei a rir enquanto me despedia dos “dois dedos de prosa” que tinha dado com minha mãe, fechei o celular e disse:
_ Filhote, fique tranqüilo, largue disso e deixe o pau deitado mesmo, venha aqui com a mamãe preparar uma janta para ela e o papai que logo vai chegar, pois você é muito novo para tanta preocupação em manter o varão em pé.
Susana Bueno
(Texto escrito em janeiro de 2007)