Osso duro que roer
Atualmente eu tento, tento porque tento fazer um texto sério, inteiramente sério, e não consigo. Hoje, por exemplo, eu não conseguiria, apesar da dor...
Para não imaginarem que estou doentinha, vou logo dizendo que sou osso duro de roer e não é qualquer coisa que me abate, apesar de eu supor que muita gente deva fazer até despacho pra mim.
Trabalho intensamente, num movimento absurdo de consultório. Para tudo ficar funcional, as coisas lá são bem esquematizadas, inclusive o desempenho da secretária: cadeira com rodízios, para eu poder deslizar à vontade; também o foco tem rodízios; cama automatizada; tudo para que o exame ginecológico seja o mais breve possível, beneficiando a paciente, encurtando o tempo do atendimento e diminuindo meu esforço físico.
Atendi a uma senhora que está com osteoporose. É dito através da densitometria que sua massa óssea está extremamente diminuída. Isto se deve a vários fatores, dentre eles, a raça, a cor, a estatura, o sexo e a falta de estrogênio (hormônio feminino). Essa paciente está na menopausa, é branca, magra e baixa, condições que elevam a possibilidade de osteoporose (osso poroso). Aliados a isso, contribuem prejudicialmente uma alimentação pobre em cálcio e vitamina D, ingestão de grandes quantidades de café e refrigerantes, o fumo e a vida sedentária. Um prato cheio para ela, uma vez que preenche todos estes requisitos.
A consulta foi formal demais. Eu falei, expliquei, orientei e mediquei. Parecia uma professora diante de uma criança apavorada com a matéria da escola. Não havia jeito. Eu tinha que falar assim. Minha função era alertar quanto às deformidades ósseas, que poderiam causar dores e dificuldades na postura, à possibilidade de fraturas numa queda ou até espontaneamente.
Uma amiga que a acompanhou chegou a ficar com os olhos umedecidos por lágrimas. Vi que precisava interromper o clima pesado e parti para o exame ginecológico. Pelo menos naquele momento este exame não incomodaria tanto quanto minhas palavras.
Começou a ginástica: liga-se cama; reclina-se a paciente; posiciona-se as pernas; secretária ao lado para me auxiliar; puxo a cadeira; puxo o foco; preparo-me para sentar e.... meu pé dobra...
Sim, meu pé dobrou por causa da sola de uma bota já envelhecida. Junto com o pé meu corpo também dobrou e a cadeira de metal caiu, fazendo um estardalhaço. Eu poderia até me amparar numa parede e largar o foco, mas, por instinto, eu o segurei mais ainda (não só para tentar me segurar em algo, como para não ter que comprar outro...).
Vi que, se me segurasse em mais alguma coisa, eu poderia torcer o tornozelo, e me deixei cair no chão, com o foco por cima de mim, óbvio... Tchibum! pela segunda vez.
Eu me senti um albatroz sexagenário tentando levantar voo. A paciente me olhava de lado, ainda deitada na mesma posição. Minha secretária ficou estática e não teve o tino de me acudir, ao ver a cena absurda.
Já que eu não teria como manter a pose, uma vez que a pose era das mais desagradáveis, a única coisa que me veio à cabeça foi dizer para paciente: "Viu?! Imagine se fosse com a senhora... É numa bobeira dessas que a gente se quebra toda...".
Eu não sei não, mas eu percebi um risinho sádico de satisfação no canto de sua boca... Eu falava, tentando levantar o foco. Lembrei de Roberto Carlos cantando "Emoções" ao microfone, não sei por quê.
A coxa doía. Não sei se foi eu quem levantou ou se foi o foco que, possuído por alguma força paranormal, me ergueu. Dei-me conta de que tudo estava de pé, inclusive a cadeira. A adrenalina foi tanta que nem senti tudo voltar ao lugar.
Depois disso, já sentada e protegida em uma cadeira com pés mais largos e uma enorme mesa para eu me debruçar, ouvi a paciente relatar outras queixas, enquanto eu testava meus movimentos de perna, pé e quadril. Foi difícil, uma vez que eu estava toda dormente...
E uma música, agora não mais "Emoções", me veio à lembrança: Roda Viva, de Chico Buarque: "A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda viva e carrega o destino pra lá"...
Atualmente eu tento, tento porque tento fazer um texto sério, inteiramente sério, e não consigo. Hoje, por exemplo, eu não conseguiria, apesar da dor...
Para não imaginarem que estou doentinha, vou logo dizendo que sou osso duro de roer e não é qualquer coisa que me abate, apesar de eu supor que muita gente deva fazer até despacho pra mim.
Trabalho intensamente, num movimento absurdo de consultório. Para tudo ficar funcional, as coisas lá são bem esquematizadas, inclusive o desempenho da secretária: cadeira com rodízios, para eu poder deslizar à vontade; também o foco tem rodízios; cama automatizada; tudo para que o exame ginecológico seja o mais breve possível, beneficiando a paciente, encurtando o tempo do atendimento e diminuindo meu esforço físico.
Atendi a uma senhora que está com osteoporose. É dito através da densitometria que sua massa óssea está extremamente diminuída. Isto se deve a vários fatores, dentre eles, a raça, a cor, a estatura, o sexo e a falta de estrogênio (hormônio feminino). Essa paciente está na menopausa, é branca, magra e baixa, condições que elevam a possibilidade de osteoporose (osso poroso). Aliados a isso, contribuem prejudicialmente uma alimentação pobre em cálcio e vitamina D, ingestão de grandes quantidades de café e refrigerantes, o fumo e a vida sedentária. Um prato cheio para ela, uma vez que preenche todos estes requisitos.
A consulta foi formal demais. Eu falei, expliquei, orientei e mediquei. Parecia uma professora diante de uma criança apavorada com a matéria da escola. Não havia jeito. Eu tinha que falar assim. Minha função era alertar quanto às deformidades ósseas, que poderiam causar dores e dificuldades na postura, à possibilidade de fraturas numa queda ou até espontaneamente.
Uma amiga que a acompanhou chegou a ficar com os olhos umedecidos por lágrimas. Vi que precisava interromper o clima pesado e parti para o exame ginecológico. Pelo menos naquele momento este exame não incomodaria tanto quanto minhas palavras.
Começou a ginástica: liga-se cama; reclina-se a paciente; posiciona-se as pernas; secretária ao lado para me auxiliar; puxo a cadeira; puxo o foco; preparo-me para sentar e.... meu pé dobra...
Sim, meu pé dobrou por causa da sola de uma bota já envelhecida. Junto com o pé meu corpo também dobrou e a cadeira de metal caiu, fazendo um estardalhaço. Eu poderia até me amparar numa parede e largar o foco, mas, por instinto, eu o segurei mais ainda (não só para tentar me segurar em algo, como para não ter que comprar outro...).
Vi que, se me segurasse em mais alguma coisa, eu poderia torcer o tornozelo, e me deixei cair no chão, com o foco por cima de mim, óbvio... Tchibum! pela segunda vez.
Eu me senti um albatroz sexagenário tentando levantar voo. A paciente me olhava de lado, ainda deitada na mesma posição. Minha secretária ficou estática e não teve o tino de me acudir, ao ver a cena absurda.
Já que eu não teria como manter a pose, uma vez que a pose era das mais desagradáveis, a única coisa que me veio à cabeça foi dizer para paciente: "Viu?! Imagine se fosse com a senhora... É numa bobeira dessas que a gente se quebra toda...".
Eu não sei não, mas eu percebi um risinho sádico de satisfação no canto de sua boca... Eu falava, tentando levantar o foco. Lembrei de Roberto Carlos cantando "Emoções" ao microfone, não sei por quê.
A coxa doía. Não sei se foi eu quem levantou ou se foi o foco que, possuído por alguma força paranormal, me ergueu. Dei-me conta de que tudo estava de pé, inclusive a cadeira. A adrenalina foi tanta que nem senti tudo voltar ao lugar.
Depois disso, já sentada e protegida em uma cadeira com pés mais largos e uma enorme mesa para eu me debruçar, ouvi a paciente relatar outras queixas, enquanto eu testava meus movimentos de perna, pé e quadril. Foi difícil, uma vez que eu estava toda dormente...
E uma música, agora não mais "Emoções", me veio à lembrança: Roda Viva, de Chico Buarque: "A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda viva e carrega o destino pra lá"...