UM MOMENTO

Por Deus! Como é que a gente conhece pessoas numa cidade grande!?

Não havia ninguém para responder. Estava só. Da janela de um oitavo andar, contemplava o dia, que rompeu cinzento, frio e triste, compatível com o meu estado de espírito; sentia-me arrasada e infinitamente só. E era domingo...

Nada pra fazer, nenhum livro que pudesse ser lido, ninguém pra conversar, só os volumosos jornais jogados de forma displicente sobre o sofá. Não sei por que os compro, nem sempre os leio. Tomar conhecimento das noticias que eles transmitem é admitir conivência de existência pacífica com a brutal realidade que nos cerca.

Positivamente, hoje não é o meu dia, e neste momento, não sei se sou real, se existe.

Afinal, quem sou eu? Maria, Joaquina, Josefa? Pouca importa! Estes nomes comuns assemelham-se à minha pessoa. Nada fiz ao longo da vida que merecesse destaque e pudesse constar dos anais da História.

Sei que sou gente e estou perdida num imensurável deserto, sufocada pelas tempestades que me levam ao desespero, funcionando tal qual um cinturão em minha volta, espremendo-me contra própria incapacidade e limitações.

Nesta agonia lenta meu corpo se debate até a desintegração psíquica, qual verdadeiro choque atômico, espalhando pelo ar partículas mutiladas.

O corpo resiste. A alma morre. Alma morta sentimentos mortos. Não existe mais em mim aptidão para sentir. Sofro transmutação. Sou máquina. Estou programada para a insensibilidade.

Meu coração transplantável será apenas músculo, não mais receberá impulsos emocionais transmitidos pelo cérebro; meus olhos não refletirão beleza, porque esta já não mais existe; por minhas narinas não mais entrarão o odor perfumado dos campos e das flores, mas sim, o gás letal da imensa chaminé da fábrica MUNDO; meus lábios só emitirão frases como estas: correto senhor, dados computados, não tem registro; de minhas entranhas expulsarei cartões perfurados.

Já nem sei se falei alto ou se foi pura reflexão, o que sei é que me encontrava ali, de pé, no centro da sala daquele apartamento, cujas paredes pareciam fechar-se cada vez mais, numa tentativa de sepultar-me viva. Meus olhos estavam fixos num pequeno quadro que retratava a paisagem calma e tranqüila do campo, com céu azul, árvores verdes, águas claras e casa branca. Olhava o quadro, sorria, chorava e protestava:

Oh, por favor, me ajude! Apareça diante de mim alguém a quem possa queixar-me!!!

- O cavalheiro deseja falar? Aproxime-se por favor.

- Sim, Meritíssimo. Mas antes, quero desfazer um pequeno equívoco: não sou um cavalheiro e sim uma dama: uma máquina-mulher.

- Equivoco desfeito, Identifique-se, Nome?

- Nome...Lembro não... Aceita a desculpa de Alzeimer? Alguém só por que eu fiz uma pergunta repetida disse que eu sofria do mal do alemão

-Idade.

-Idade... 49, 52, 62,65,70? Olhe pra mim e diga, na dúvida, requisite o teste do carbono 14.

- Profissão.

- Tem mulher jardineira? Acho que é isso que disseram que eu era.

-Filiação.

- Made in Brazil

- A queixa será formulada contra quem e por quê?

- Contra os andróides terrestres; contra a sanha destruidora e negativa desses vândalos, responsáveis pela depredação da flora e da fauna e conseqüentemente do desequilíbrio ecológico. Responsáveis também pelos pulmões cinzentos, pela descoloração daquilo que chamamos céu, outrora azul-límpido, hoje cinzento-nebuloso. Culpados pela poluição dos rios, mares e oceanos. Culpados pelas guerras, pela fome, crimes, desamor, descrença e negação de tudo aquilo que era belo. Culpados pela morte de minha sensibilidade poética.

Sim, Meritíssimo, sem inspiração a minha poesia inexiste, porque ela é a exaltação e não a negação. E onde buscar hoje, inspiração?

Queria tanto exaltar a natureza, seu Criador e semelhantes...

Busquei a natureza. Devastada

Busquei o Criador. Existe , mas por razões que desconheço, permanece surdo-mudo.

Busquei o semelhante. Insensível.

Na ânsia de descrever o belo, meus olhos buscaram o infinito. Tarde demais..., os homens por lá andaram; já não há mais encanto na lua, não passa de uma ostentadora do brilho alheio, um bloco compacto de pedra cinzenta a nos enganar com suas formas irreais. De musa inspiradora dos poetas e namorados, passou a ser meta dos cientistas para uma futura base lunar, possivelmente equipada com foguetes de longo alcance apontados para o pré-suposto inimigo.

Tudo está perdido. É o caos total. É a morte lenta de toda a humanidade.

E o meu grito se perderá sem eco no deserto... Aos poucos serei tragada pela natureza...

Morrerei de pé

E o meu corpo será devastado como a natureza...

Zélia Maria Freire
Enviado por Zélia Maria Freire em 08/07/2008
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