Chuva molhada
Uma chuva “fina”, como o cabelo fino da ninfeta na “Avenida Nova”.
Uma chuva “perpendicular”, como os pensamentos mais terríveis.
Uma chuva ”compassada”, como a melodia de uma nota só.
Uma chuva “generosa”, como os furacões caribenhos.
Uma chuva “silenciosa”, como os gritos de alerta.
Uma chuva “cautelosa”, como os demônios do apocalipse.
Uma chuva “fria”, como a vida dos mendigos.
Paciente, como os deuses do juízo final. Com fome, como os negros da Etiópia. Estou sem perspectivas razoáveis para continuar andando sob esta chuva. Paro, pois estou decidido a parar. Protejo-me destes pingos intermináveis, instalando-me sob uma marquise de um edifício velho, desabitado e preste a ruir.
Não me preocupo se é dia, noite, ou se o planeta terra hospeda outros hóspedes além dos conhecidos terráqueos.
Não iludo a minha camiseta vermelha sem estampa, nem a minha calça jeans desbotadíssima e surrada. Também não iludo o meu tênis preto sem cadarço, nem os meus cabelos grisalhos, que esta chuva é passageira.
O vento cansado de correr pelo mundo estacionou nesta parada e se esqueceu de levar a chuva para outros redutos menos favorecidos.
Apóio o meu pé direito na soleira da porta, ou seja, no lugar onde existia uma porta, com a finalidade única de descansá-lo. Às vezes, esta parte do meu membro inferior se cansa de tanto andar. Talvez, por meu tênis preto sem cadarço estar encharcado d’água, ele tenha se cansado ainda mais. O seu repouso parece-me deveras merecido. O meu pé esquerdo é mais resistente, talvez por se adaptar melhor às condições adversas. Revezo os pés na soleira da porta, e sabedor que sou das suas condições físicas momentâneas, estipulo um intervalo maior para o pé direito.
Aproveito que a chuva continua fria e sem “hora” para parar, e desenterro da minha bolsa um exemplar barato de “Hamlet”. A página marcada representa outra chuva perpendicular. A melancolia da chuva se compõe à minha melancolia e inunda “Elsinorg” de melancolia.
Não me atrevo a dramatizar a vida mais do que dramatizou Shakespeare. As suas tragédias são sensatas e fundamentadas, contrapondo-se à minha insensata tragédia sem fundamentos.
A chuva continua compassada, porém a sua intensidade é maior do que suportam os bueiros. E observo atentamente, embora não dê a mínima atenção, alguns pontos de enchente.
O drama chega ao fim e confundo as enchentes deste mundo venenoso, com a enchente de veneno no “Reino da Dinamarca”.
Uma chuva fina... e não tão generosa...
Paciente, todavia já sem paciência, e ainda com mais fome, ando decidido a andar e desprotejo-me destes pingos intermináveis, desinstalando-me desta hospitaleira marquise.
Não me preocupo se é dia...
Enterro o exemplar de “Hamlet” na minha bolsa e vou novamente me molhar...