Revirando Baús
Revirando Baús
Dou uma batidinha no envelope, a poeira sai, desando a espirrar, é sempre assim, poeira me coça o nariz, lembranças me alagam a alma. E me vem aqui alguns baús, reais, metafóricos, emocionais, a mente voa, e lembrei de um tempo lá longe, um amigo mineiro que veio cá pro norte e construiu vários móveis da casa dele, fez mesa, bancos corridos, cama e um baú enorme, tudo bem rústico e quando foi embora com a
família herdei algumas peças entre elas o baú. Na minha antiga casa, por um tempo guardou lençóis, toalhas, ele decorava a sala. Depois o coloquei no quarto da filha e virou depósito de brinquedos, em seguida foi para o quintal virou depósito de quinquilharias, cacarecos. Hoje nem sei dele, nem do seu construtor, ficou perdido nalgum quintal esquecido lá no meu passado, algum quintal perdido da minha memória.
Gosto de caixas, baús, e sempre guardo muita coisinha, pequenas coleções, cartões, ingressos mega antigo de shows, depois lá um dia me desfaço e como já escrevi, sempre me arrependo, sempre jogo fora o que em tese não deveria. Sinto falta dos meus baús recordatórios de meus escritos não guardados, da menina que fui da mulher moça, da mulher-mulher, nada guardei de cada fase por alguma razão. O certo é que hoje, como tantas coisas palpáveis e não palpáveis, eles me fazem falta, muita falta. Seriam referências escritas de quem fui, do que senti, vivi, pensei, e na minha memória foram muitos, já que a escrita sempre teve um significado quase reflexivo, refletido em mim.
Quando escrevo, me olho no espelho mais analítico e revelador de mim mesma. Mas e cartas? Cartas combinam com baús, gavetas, pastas, delas também tenho um tanto. Amareladas, descoloridas, enviadas e não enviadas, essas fazem parte de um arquivo emocional, vez por outra mexido, tentativa de arrumar, e alguns cantos jamais tocados, sacos e pastas fechados, sabem-se lá, às vezes olhados, mas raramente abertos. Respeitados no seu guardar.
Dia desses, arrumando alguns cantos que me autorizo, achei um cartão bacana que fiz, e não entreguei, o Honroso destinatário desmarcou o encontro e depois de tudo dada tal efemeridade, acabou. Passaram-se três anos ou mais, numa das várias vezes que desbloqueio um contato do MSN ele estava lá, conversamos e ele propôs um encontro, já não tem qualquer chance de algo entre nós, passou, mas ele fazia questão de se mostrar como mudou, ficou mais decidido, diferente como ele mesmo falou, daquela época, hoje mora fora, trocou de trabalho, e insistiu muito por se mostrar nesta nova fase, então falei que tinha uma relíquia, o cartão, perguntei se queria ver, ele disse, sim, claro. Então combinamos num fim de tarde o encontro. No dia, recebi no celular uma mensagem dizendo que precisou fazer uma viagem de urgência, pedindo desculpas, etc. O cartão está cá, pelo jeito as mudanças nem foram assim tantas (risos).
O parêntese da carta é apenas referência para lembranças neste vasto, em parte até perdido, esquecido baú, arquivo emocional e memórias afetivas tão intensas.
O meu baú é enorme, considerando que vivi, morei em diversos lugares distintos, ter transitado por alguns estados (geográficos e civis), exercido diversas atividades, conhecido muitas pessoas, construído e reconstruído, com alegrias e dores, por muitas vezes, este existir. É uma boa reserva de memória, um baú considerável.
Mas aconselho e sempre me permito essa ousadia, que vasculhar é bom, limpar a alma e o baú é necessário, desentulhar gavetas, armários, nos faz melhores, tirar o pó, traças e mágoas, é mistér.
Popularmente falando, isto seria bater a poeira e dar a volta por cima. Mas não é bem assim, de algumas lembranças, nunca devemos nos desfazer e é claro se foram boas vivências, belas cartas, cartões, não há que por fora. Dar prosseguimento a vida desancorando de um passado é o ideal, ninguém é igual a ninguém, únicos, jamais encontraremos paralelos e fazer comparativos, parâmetrizar em excesso, só atrapalha.
Então o melhor é guardar em nossos arquivos emocionais, o “muito bom”, jogar fora os excessos, os cartões desnecessários, aquilo que de fato não faz qualquer diferença. E perceber que de “acontecimentos” ruins, decepções, as vezes se extrai muita coisa boa. Tira-se “bom” da parte boa e até de algumas não tão boas assim. Se não fosse assim de que sobreviveriam , escritores e poetas?
Vamos lá, mãos a obra, disposição para mexer, coragem e coração preparado para o que poderemos encontrar, toda limpeza, arrumação, é trabalhosa, muitas vezes se conclui com várias mexidas, às vezes precisamos voltar lá uma, duas, quantas vezes for preciso, isso para que se faça uma boa arrumação, desfazimento coerente, nada de jogar para baixo do tapete e que no final tenhamos a sensação concreta de ter sido bem sucedido. Casa, corpo e alma limpos, arrumados, pronto para novas etapas, vivências, capítulos.
Agora, poetizando, concluo que:
Esta poetisa se arquiva inteira e com apetrechos. Ciclicamente se desarquiva desarruma para se saber pronta, apta a prosseguir.
Entretanto arquivos emocionais não são de tão fácil manuseio, deveras delicados, por si só às vezes se escondem, e nem conseguimos acessá-los todos. Alguns egressos tratados de ilusões permanecem em seus casulos, conchas, trancafiados. Em total solidão.
Eis que adormecem, e seus sonhos são transpostos em arte, poesias, aquilo que cabe ao mais íntimo do artista. Seu eu, não revelado.
Baús, solidões, memórias, afetos perdidos, tudo parte de um inacessível arquivo emocional.