Pra facilitar a leitura, divido em capítulos. De segunda a sexta poderá ler uma parte, se sobreviver até lá...
Um treco (Automedicação)
Ato I:
Um treco (Automedicação)
Ato I:
Eu pensei em fazer uma frase ou pensamento:
“A falta de acesso a médico leva à automedicação. A falta de acesso à justiça leva à justiça pelas próprias mãos”.
Mas não é bem isso que acontece - em relação à justiça. O povo brasileiro é passivo. É mais comum existirem vítimas eternas do que justiceiros. Por outro lado, a respeito de automedicação, isso é uma constante.
O fator preponderante para isso é a própria medicina, ou melhor, o sistema médico do Brasil. Aqui não vou comentar sobre os outros países, mas muita coisa acontece igual lá fora, às vezes até pior - e olhe que não é só em países de terceiro mundo...
Se alguém não consegue ser atendido ambulatorialmente, com o mínimo de dignidade, em um hospital público, este doente recorre à medicina privada. Afirmativa correta? Não...
Quem é empregado e tem um plano de saúde pelo trabalho, neste ponto, está garantido. Quem tem que dispor de uma parte de sua renda mensal para aplicar em assistência médica, normalmente tem que pensar se vai sobrar para pagar outras despesas. Geralmente paga-se muito caro por isso. O impressionante é que o médico que atende esses planos também ganha muito pouco.
Outro agravante é a dificuldade para ser marcada uma consulta. No particular é menos difícil, mas num hospital do governo a coisa é quase impossível. Parece até que a pessoa pode ficar esperando meses para tratar uma doença.
Ato II
Ato II
Vejo com isso que não se faz medicina preventiva neste país. Dou exemplos:
- É mais fácil atender um enfarto agudo do miocárdio do que se evitar este enfarto.
- Se a pessoa chega a um hospital com dor abdominal e febre, e se o quadro não for grave, será medicada com analgésico e antitérmico e será recomendado procurar um “médico” para acompanhamento... Se em poucas horas depois, esta mesma pessoa voltar com quadro de abdome agudo por apendicite ou uma infecção renal, provavelmente, depois de passar muitas horas esperando, será socorrida. No caso de cirurgia, se ela não estiver morrendo, poderá passar até dias na “fila de espera”, mesmo que tenha indicação absoluta e urgente desta intervenção.
- Hoje em dia a pessoa de classe média vem precisando de hospital público tanto quanto um vagabundo, podendo se sujeitar a várias humilhações, que não passaria na sua trajetória de cidadã, pagante de seus impostos. Pelo menos em hospitais públicos somos atendidos com democracia - todos somos iguais perante a desgraça.
Lembro que há alguns anos houve uma campanha em massa para coleta de material para exame de Papanicolau nas mulheres, para prevenção do câncer do colo do útero. Foi uma beleza... Beleza não foi o que aconteceu depois: centenas delas, com suspeita de câncer e que precisavam de cirurgia, esperaram muitos e muitos meses para serem internadas. Muita gente só foi atendida depois de estarem com câncer invasivo.
Isso ocorre todos os dias em qualquer lugar do país, a não ser que a pessoa tenha “conhecidos”. Dizem que o cidadão tem mais sorte quando conhece um advogado “esperto”, um policial e um médico... Acredito neste “provérbio”...
Ato III
Ato III
Quando eu era “comedora de merenda” em plantões nesses hospitais, diziam para mim: “Escolha um paciente e trabalhe em cima dele até o final do seu expediente”. Eu perguntava: “E os outros?!”. Pergunta sem resposta... Era o famoso “deixa que eu deixo”.
Vejo que os hospitais trabalham em regime de guerra, verdadeiros hospitais de front. Dão prioridade aos mais jovens ou possíveis sobreviventes. O resto vai depender da disponibilidade do corpo clínico e da infra-estrutura hospitalar. Pior de tudo: com a participação do médico, que, apesar de não ter a ver diretamente com isso, faz parte do esquema e, portanto, conivente.
Tenho muitas histórias absurdas, criminosas até, das quais já presenciei. Não daria pra catalogar - só pra resumir nas palavras aqui deixadas. Obviamente já vi heróis trabalhando. Já vi gente dar a sua vida, ou parte dela, para salvar estranhos, mas, com certeza absoluta, enquanto eles fizeram a sua parte, outros, muitos outros, em vários cargos, não fizeram, sobrando as consequências para a população, na qual pode estar um integrante de nossa família.
Eu tive uma experiência (dentre milhares de outras) muito interessante:
Entrei numa sala de parto e vi duas médicas fazendo um parto normal “anormal”. A paciente gritava muito. Uma das médicas (a chefe) batia no rosto da mulher, dizendo: “Na hora de trepar você não fez este escândalo...”. Sem comentários...
Uma outra: Quando eu era novinha na medicina, acompanhei uma paciente em trabalho de parto e descobri que ela eliminava mecônio (líquido amniótico corado com fezes do feto), o que pode significar sofrimento fetal, falta de oxigenação. Anotei no prontuário e avisei ao chefe, que estava dormindo. No hospital não havia sonar (aparelho pra ouvir o coração do bebê intra-útero), só um pinard, um funil arcaico. Como eu levava o meu próprio aparelho, pude perceber que os batimentos estavam anormais.
Ato IV
Ato IV
Tive que me ocupar com outras doentes e deixei para tomarem uma decisão. Meses depois fui chamada para uma sindicância, porque o bebê tinha nascido morto. Eu não era a culpada, nem fiz o parto, mas a alegação era de que o bebê estava morto “há muitos dias”. Eles diziam que eu tinha anotado por engano uma frequência anormal dos batimentos cardíacos fetais durante o trabalho de parto e afirmavam que eu me confundira com a pulsação da mãe; que o líquido que saía era de feto morto. Fiquei como ignorante e todos ficaram impunes...
Quando eu estava no internato, duas coisas aprendi bem: a fazer toque pra sentir útero e ovários. A outra foi ouvir batimentos cardíacos do bebê no útero da mãe. Tive um mestre, Dr Castilho. Ele era elegante e muito bom médico. Pedia permissão às pacientes para fazer o exame e depois me orientava a examinar as pacientes da mesma forma. Elas concordavam. Ele me perguntava: “Sente uma pontinha dura aqui? Percebe? Mexa mais, por obséquio”.
Eu ficava sem jeito ao saber que ali existia uma mulher que estava sendo examinada por uma acadêmica. Certo dia ele percebeu meu constrangimento e disse a uma paciente: “Senhora, esta estudante será uma excelente médica e necessita aprender através de seu exame ginecológico. A senhora permite prosseguir o exame?”.
Fiquei toda boba, tanto com o médico quanto com a paciente, que jamais lembrarei quem foi. Ela disse que um médico como ele teria direito a fazer o que quisesse e que se me indicou para aprender em seu corpo, seria por uma boa causa. Lembro que a paciente tinha um tumor no ovário. Dr Castilho faleceu logo depois disso.
Fiquei tão expert em toques que passei a diagnosticar mais do que os catedráticos. Tive outros professores, como Jandira Areia. Ela me ensinou a examinar uma mama. Recordo perfeitamente de suas mãos nas minhas enquanto examinávamos. Detalhe: ela não ganhava pra isso. Aprendi mais na vida prática com algumns colegas amigos do que na faculdade com os professores. Jandira é uma profissional que está na ativa e nem imagina que falo sobre ela neste momento.
Diante disso, já que temos médicos e médicos, e atualmente não temos tantos médicos tão bacanas assim, quando se tem uma gripe, uma febre, uma diarréia ou coisa que valha, o melhor é se tratar com chás e ver no que dá... A medicina profilática não existe. A curativa, vai depender do sorteado.
Ato V
Ato V
Agora voltemos para um consultório particular. Bem, eu não sei como anda realmente a qualidade de atendimento dos médicos por aí... Sei do que eu vejo de vez em quando no meu, recebendo pacientes muito mal cuidadas ao longo de anos. Observo que o padrão dos médicos caiu bastante e me sinto uma estranha no ninho quando protesto sobre certas coisas que deveriam causar indignação na minha classe, mas só causam irritação.
Não sou “a luta continua” ou seja, uma militante, uma revolucionária, até porque certas coisas são tão óbvias que não precisaria disso... Muitos médicos tratam os doentes de costas. Não sei se por causa do valor irrisório de uma consulta de convênio ou por causa de suas personalidades deturpadas. De qualquer forma, deveriam estar em outra profissão e exercerem suas capacidades intelectuais em coisas que realmente soubessem fazer e não que não causassem morbidade à população.
Médico não é padre; médico não merece ganhar tão pouco por seus serviços. Hoje ouvi Galvão Bueno comentando numa corrida automobilística que os pilotos são merecedores de ganhar o que ganham, uma vez que são corajosos, audazes, ao enfrentarem a velocidade... Muito fácil quando não se tem ninguém na garupa, não é?
Médico deve ser recompensado à altura. Médico, que valha, ainda é um ser especial, embora encontremos profissionais que não merecem ter o mesmo carimbo que eu, que lutei, que me empenhei, que sofri e que passo dificuldades, apesar de salvar pessoas sem ver minhas contas saldadas. Médicos que estão bem financeiramente, mas matam sem saber que estão matando - ou não estão ligando muito pra isso, não...
Aí, vem o cara, que se achando o rei da cocada preta, cobra uma nota pela consulta ou o tratamento. A pessoa que não tem plano de saúde, que tem medo de hospital público e está numa enrascada, até paga. Não estou falando de rico. Rico tem seu plano de saúde e paga por fora o bam-bam-bam. Estou falando daquela pessoa de classe média que se vê num desespero, com um filho por exemplo.
O médico não é obrigado a dar consulta ou atendimentos gratuitos, além de os hospitais não terem peninha de gente sem grana. O paciente não pode pedir favores e a economia de uma vida inteira acaba aí, num desespero desses. E graças a Deus se houver economias ou parente para emprestar...
Ato VI
Ato VI
Aí, seu Haroldo, que nem aposentado é, uma vez que não pode comprovar tempo de serviço e anda em falta com seu pagamento na previdência, ganhando uma merreca e cheio de remédios pra colesterol, hipertensão, diabetes e artrose, tem um “treco”.
Este treco está incomodando muito. Ele se vê numa encrenca. Não tem como ir a uma clínica particular e morre de medo de entrar num desses hospitais públicos.
Pior é se ele estiver muito doente... Este treco vai atrapalhar os bicos que ele anda fazendo para pagar suas contas e comprar seus remédios. Fora a família, que está numa pior... O filho é formado à custa de muito sacrifício. É nele que seu Haroldo depositou toda a sua esperança na vida - viveu para o futuro dele, deixando de viver o seu presente.
Ele nem velho é. Sean Connery é muito mais velho... E seu Haroldo ainda dá umas incertas na Dona Maria - mais do que Sean.... E o "treco" está atrapalhando até a ciscada na esposa. Está impedindo o viver normal.
Ele vai a uma farmácia e lá encontra um “médico” casual - o balconista, que nem farmacêutico é, mas que o atende todo sorridente e cheio de marra. Sr Haroldo indaga:
- “Você entende de "treco"? Já viu alguém com um treco assim?”.
O balconista pensa incorporar o Dr Bezerra de Menezes e começa:
- “Bem, senhor (muito respeitoso e isso dá crédito), eu acho que tenho um remédio muito bom pra "treco", do laboratório Ghelts...”.
O balconista recebe uma comissão ao recomendar o remédio. Existe até genérico, mas em casos anteriores o genérico não funcionou, uma vez que essa coisa de genérico é uma furada em muitos casos. Farmácia de manipulação até vende mais barato o "remédio para trecos", mas, aí, tem-se que passar por um médico, e a consulta está irreal.
Inclusive a tal farmácia da esquina andou tendo problemas com a fiscalização de medicamentos... Como saber se eles estão manipulando a medicação direito?... É como sabão em pó. Alguém entende porque OMO está no mercado sempre mais caro que os outros? Seu Haroldo compra sabão “Craca”, dois reais mais barato, pra lavar chão, e sabão Omo pras roupas. Ele nem sabe se Craca é melhor ou pior, mas Omo é Omo... Pelo menos OMO explora o povo há décadas, sendo uma marca confiável, portanto.
- “Quanto estão custando os de marca?”.
- “Bem... aí a coisa pega... Uns 100 mangos...”.
“PQP! Se eu tiver que ir ao meu médico (que é meu médico só no nome, porque eu deixei de ir nele há anos), gastarei trezentos mangos... Mais cem mangos com isso aqui...”.
- “Então! Por isso recomendo a mesma coisa pelo laboratório Craca, ou melhor, Ghelts...”.
- “Vintinho e eu to curado?”.
- “Sim, senhor....”.
- “Precisa de receita?”.
- “Que isso! Pro senhor isso não vale. É cliente antigo... É como atestado pra academia de ginástica: qualquer puto pode dar...”.
Seu Haroldo saiu esperançoso, porém, temeroso, como num contrato de risco da Petrobrás. Ele sentia como se tivesse comprado alcachofra na feira: não sabia nem o que era, mas disseram que era o fino numa salada. Chegou à sua casa casa; pegou um copo d´água; engoliu dois comprimidos da medicação.
Sendo psicológico ou não, houve melhora acentuada. Uma semana depois ele teve outro treco muito mais forte. No ano anterior o médico tinha medicado com antiácido, dizendo que era gastrite. Ele até estava achando que fazia pré-natal de gastrite - e nunca que o bebê nascia... Achou que gastrite era como uma marca: ou se nasceu pra ter ou não se tem.
Mais uma semana se passou e ele foi internado com icterícia, amarelo que nem canário. Diagnóstico: câncer de pâncreas.
Seu Haroldo dá lembranças aos amigos e agradece a quem lhe acudiu... lá do céu...