SÃO CURTOS OS LIMITES QUE SEPARAM A BONDADE DA CRUELDADE

Imagine a cena: uma senhora de uns 70 e poucos anos, cabelos esbranquiçados pelo tempo, pele rústica, de cor morena, magricela, voz mole, quase inaudível, boca com poucos dentes, e os que restavam, amarelados e corroídos talvez pelo fumo, entrando em um pronto socorro da cidade, vitimada por uma dor intensa, tais as caretas que ela fazia de quando em quando. Imaginou?

Agora acrescente a esta cena o seguinte descaso: apoiada ao balcão, trêmula, a mulher pede para ser atendida. A pergunta que lhe vem de encontro: “Qual seu plano de saúde”? Ela não entende a pergunta, talvez nunca tenha ouvido essa expressão. A atendente, com visível desdém, repete, mas a mulher continua sem compreender. Então, um outro senhor, um pouco mais novo, no balcão ao lado, resolve interferir no diálogo - talvez comovido com a ingenuidade dela e exasperado com o atendimento indigno daquele dito “centro de saúde”, para lhe explicar, em pausas, o que é um plano de saúde.

Não suportando a dor, a senhora apenas sussurra...Daquela canseira entendem-se algumas palavras: “...eu não tenho isso não, sô aposentada! O governo paga pouco, sabe como é, né? Por favor – agora voltando-se para a moça, tô morrendo de dor no rim, me ajude, faz favor...” E a atendente, alguém que deveria estar pronta para acolher pessoas adoentadas, independentemente da situação social, simplesmente a ignora, dizendo que ela deveria se dirigir ao Pronto Socorro de outro hospital que atendesse pelo SUS; ali só se artendia pacientes com um plano privado de saúde. A senhora implora, está só, não agüenta mais andar, a dor é voraz. Mas a atendente, como se toda aquela cena não passasse de uma representação, apenas repete a resposta. E repete...e repete...assim acontece por alguns minutos, até que a mulher se cansa e vai embora chorando.

Do banco da sala de estar, diga-se de passagem, belíssima, com tv a cabo fornecida "gratuitamente", quatro outros pacientes e eu assistimos estupefatos àquela cena, sem dizer nada...Nada! Poderíamos ter nos unidos e pago uma consulta à senhora, mas apenas criticamos, como faço agora.

Dias depois, já em minha casa, totalmente recuperado da asma, toca o telefone. É daquele hospital...Uma jovem de voz sensual, bastante educada, relata-me como o atendimento mudou, agora tanto ricos como pobres recebem o mesmo tratamento, afinal, são 70 anos de atendimento à comunidade, 70 anos salvando vidas, 70 anos acreditando no futuro...”E no final da conversa, depois desse jogo lindo de palavras, ela pergunta: “O senhor poderia contribuir conosco para que possamos manter nossa qualidade e nosso auxílio social aos mais humildes?” - E agora, o que você faria no meu lugar? Negaria de vez, blasfemaria ou simplesmente efetuaria a doação?

Eu dei uma gargalhada daquelas que só é possível diante de uma peça de Sílvio de Abreu, desliguei o telefone e fui tomar banho. Mais alguns minutos com aquela atendente, eu poderia retornar ao hospital novamente, agora vitimado por um ataque cardíaco, com uma única diferença, ao contrário daquela senhora, eu seria bem atendido, não porque sou “bonitinho”, mas porque tenho um plano de saúde, diga-se de passagem, pago com muito suor.