"Perdoa-me por me traíres"

João Leôncio jamais lera um livro, tinha muito mal o secundário e era mecânico.

Sua mulher Potira era bonita e com educação ainda menor.

Nos primeiros anos de casamento, tudo pareciam flores. Vieram dois filhos. A vida transcorria normal e assim permaneceu longo tempo. João Leôncio saía cedo para trabalhar na oficina de compadre Zeca Canudo, apelido que ninguém sabia a origem, nem mesmo o dono.

João Leôncio almoçava em casa; o trabalho era perto. Durante a noite, via um pouco de televisão com a mulher e cedo se recolhiam. A vida amorosa do casal foi bem até onze anos de casados. Depois, sem motivo, tornou-se escassa. Os pequenos prazeres que desfrutavam antes foram relaxados, Potira mostrava-se em decadência física e João Leôncio passou a beber um pouco mais do que fazia, logo no inicio do casamento. A situação foi-se agravando: os dois pouco se falavam, nada muito mais além do que o necessário.

Certa tarde um velho amigo de João Leôncio apareceu na oficina. Sujo de graxa, o mecânico ouviu do amigo que Potira andava com o filho de Sô Candelário, antigo bandido da região, agora afastado e dono de uma fazendola onde tinha uns bois. Diziam que era tudo roubado. A terra, do estado e os bois, de fazendas próximas. Como nada era de muito número, coisa de pouca monta, ficou o dito pelo não dito.

A primeira reação do traído foi usar a espingarda de cartucho, antiga companheira de caça. Mas não. Quis saber da própria mulher se o fato era verdadeiro. Potira ficou calada e baixou a cabeça. Daí para o cartório o passo foi muito curto. Tão logo estavam separados, e aguardavam o juiz marcar dia e hora para a assinatura do distrato.

Dizem que o homem guarda dentro de si uma memória comum a todos.

No dia e hora marcados, a mão de Potira estava insegura para assinar o papel que o escrivão apresentava. Era o fim do casamento. Num gesto brusco, João Leôncio levantou-se da cadeira, agarrou a mulher e beijando-a pronunciou “perdoa-me por me traíres’, seu último gesto, pois caíra ao chão para não levantar mais. Infarto.

O luto foi deveras fechado, em memória de um homem que nunca soube nada de nada sobre peças rodrigueanas.

Jorge Cortás Sader Filho
Enviado por Jorge Cortás Sader Filho em 06/07/2008
Código do texto: T1067305
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