O Papa não poupa ninguém

Mimese fajuta da prostração sabinista sobre a singela mentecapcidade

Não bastasse acordar 5h30 da madrugada todo sábado pra trabalhar num posto de saúde, tem dia que ainda se acha no direito de te reservar xingamentos, reclamações e chuvisco.

Mas tem dia que vale a pena. Tem dia que dá até pra rir. Esse sábado foi assim.

Diz que lá pelas tantas – garanto a veracidade do relato, não obstante a introdução tão comum em anedotas – me chega o cidadão:

- Tem médico hoje?

- Não, senhor. Hoje estamos abertos apenas para trabalho administrativo. – menti eu. Que não tinha médico, não tinha mesmo. Mas havia procedimentos de enfermagem. Optei por convencionar o ‘apenas administrativo’ como orientação geral dado o trabalho que tive com uma senhora idosa bastante simpática que insistia em passar por exame de aptidão dermatológica para sessões de hidroterapia sem nenhuma necessidade. Continuei:

- Caso precise de atendimento médico hoje, o senhor deve procurar um Posto 24 Horas [que hoje leva o nome pomposo e desconhecido de Centro Municipal de Urgências Médicas].

- E qual o mais perto?

- Perto mesmo não tem. Mas o mais fácil para o senhor ir é o 24 Horas do Fazendinha. – expliquei com bastante calma. – O senhor pega nesse ponto ali [apontei com o dedo diretamente para o ponto de ônibus, muito pedagogicamente] o ônibus Fazendinha. Desce no terminal do Fazendinha. – falei devagar. - Ao lado do terminal do Fazendinha, fica o 24 Horas do Fazendinha.

- Pode anotar, moço?

Anotei, tanto mais pedagogicamente. Cuidei da caligrafia.

- O senhor sabe que eu tenho um prédio?

- Como? – perguntei perplexo. O senhor que aparentava morar na rua estava com a barba a la meu-nome-é-enéas. Carregava um saco de pano, provavelmente com roupas. Boné de candidato a parlamentar.

- Eu tinha, na verdade. Um prédio de dezoito andar. Só eu tinha nove. Dei tudo prum rapazinho mais ou menos da tua idade. Escritura e tudo. Macredita que esqueci pra quem é que dei?

- Nossa, que coisa! – recompus a seriedade.

- Mas importa é Deus. Nós não somos nada. Naaaada. Nada mesmo. Deus é tudo, acima de qualquer coisa.

Concordei.

Lamento dizer que os próximos dois minutos de explanação do caro amigo aqui citado foram ininteligíveis. Algo como cobradores de ônibus, construção civil e novamente um rapazinho quase da minha idade. Na dúvida, concordei com tudo. Parecia surtir efeito. Em determinado momento, voltou ao português:

- ...e eu viajei o mundo inteiro. Fui pra todos os país. Só não fui pra Rússia, que lá eles tavam em guerra e não quiseram parar a guerra pra eu ir.

Não consegui conter a admiração pelo homem. Ri francamente, solícito.

Ele seguiu deliberando cuidadoso, franzindo a testa, muito fiel que era às lembranças:

- E uma vez os americanos me pegaram...

Tomo a liberdade de dar um breque no relato do nosso saqueiro viajante contemporâneo. Não lhes dou o direito de achar coerência no fato de os americanos o levarem, porque toda a epopéia é digna de credibilidade. Não imagina o leitor a espontaneidade do amistoso camarada.

- E uma vez os americanos me pegaram. Me levaram de avião. E eu doente! Pensei que dali mesmo eles me despachavam. Mas não. Me levaram de avião pro lugar onde nasce o sol. E era quente! Ra-paz! Era quente!

O meu muito amigo Viramundo me olhou bem nos olhos. Riu gostosamente. Sentenciou:

- E tive com o papa João Paulo II pouco tempo antes dele morrer. Ele me disse que já sentia. Já sentia que ia morrer. E eu fiquei a distância. Por respeito. E o Papa me pulou e me pegou pelo meio! O Papa me pulou e me pegou assim, pelo meio mesmo. Pelo meio.

Confidenciou em voz baixa, como quem só contasse porque era seu amigo de infância, mas que não era de bom tom falar assim da Sua Santidade, não fosse pela certeza da discrição da minha parte.

Visivelmente sentindo pelo falecimento do Pontífice, argumentou, bastante solene:

- Homem de Deus, que coisa... mas deixa ele. Um homem bom. Ih! Um homem bom mesmo. Que Deus o tenha, né.