Carregar a cruz
Quero voltar a conjugar o verbo sofrer. Quero ser novamente aquele deprimido consciente. Quero devolver a escuridão à escuridão; a podridão à podridão. Não, esse céu que dizem ser o paraíso, não é céu. Sou o testemunho que a vida não existe. Maomé também morreu na cruz.
Sentado, nu, no banco de plástico.
Alguém poderia duvidar da minha honestidade? Os rumos continuam os mesmos que atormentaram e distraíram esse ser. Não há e nunca haverá perdão verdadeiro. Os que são consagrados apenas adquirem fisionomias conciliadoras. Continuarei a procurar a identidade de toda essa ira. E ainda que demore seiscentos anos, sei, a acharei na areia de algum mar revolto, sei. Peço, então, audiência aos deuses mais vingativos que existirem nos confins do universo. Isso! Não, ainda é cedo pra se jogar a toalha.
Sentado, nu, no banco de couro.
Alguém percorreria mares bravios, terras inóspitas e céus carregados de nuvens negras, apenas pra me procurar? Creio que não. Pois, sou esses tais mares, essas tais terras e esses tais céus. O mais cego de todos os peixes; o mais rastejante de todos os animais terrestres; a mais desengonçada de todas as aves celestes. A ira humana. O absurdo de nunca morrer.
Sentado, nu, a espera da morte.
Alguém avançou o sinal e atropelou todos os meus desígnios. Impotência. Carregar a cruz por não ter coragem de usar a espada.