Carta de despedida
Tentei ser filho e não consegui. Tentei ser irmão e não consegui. Tentei ser neto e não consegui. Tentei ser sobrinho e não consegui. Tentei ser primo e não consegui. Tentei ser cunhado e não consegui. Tentei ser amigo e não consegui. Tentei ser inimigo e não consegui. Tentei ser empregado e não consegui. Tentei ser patrão e não consegui. Tentei ser escritor e não consegui. Tentei ser marido e não consegui. Tentei ser amante e não consegui. Tentei ser sogro e não consegui. Tentei ser pai e não consegui. Tentei ser avô e não consegui.
Tentar e buscar foram dois verbos constantes na minha vida, porém, o que significa tentar e buscar e não conseguir?
Geralmente, as cartas descrevem momentos, situações, conselhos, arrependimentos, declarações e mais uma série de acontecimentos que deixamos registrados na memória de alguém. Por que escrever essa carta? Realmente, não sei.
Não citarei nomes, pois os nomes são pessoais e não quero deixar ninguém achando que o esqueci, não, não quero.
Ao mesmo tempo em que escrevo essa carta, meu paladar saboreia um vinho tinto seco, sem ser um bom vinho, mas o que fazer se posso apenas comprar vinhos baratos? Como uma porção de lingüiça calabresa que estava na geladeira. Claro que ouço “The Wall”, Pink Floyd.
Qual é a atitude quando instalamos um antivírus incapaz de detectar tais vírus?
A ineficiência e o “inacabismo” se tornaram marcas registradas na minha vida. Todos os partos foram normais e as crianças nasceram saudáveis. Ninguém seria capaz de adivinhar que aqueles recém-nascidos seriam frutos de uma árvore sem raiz. Isso, árvore sem raiz! E observem que aparentemente o animal era racional, vegetal e mineral. Ninguém seria capaz de adivinhar que o planeta errante passaria por muitas órbitas estacionárias. Mas como adivinhar que uma estrada construída com todos os critérios de segurança e dirigibilidade não teria destino traçado?
A lingüiça calabresa acabou e o vinho tinto seco já está no fim. É claro que não terminarei essa carta hoje, pois os anéis de Saturno continuam densos e não densos. Fumarei o último Hollywood Red, hoje, e dormirei.
É estranho, sempre pensei que as garrafas de vinho continham 1 litro. A geladeira resolveu não mais congelar as pobres carnes que colocávamos no congelador. Estou desconexo. Então, até breve!
Bom dia! O sono atrasado dormiu dezoito horas, acordou tossindo e com muita fome. Preferi revisar essa carta – mania de escritor.
A cabeça era muito grande e não queria sair daquela caverna escura. Lá fora todos pareciam exaltados e ansiosos: Sagitário, Touro e Peixes. É estranho saber que o fim da dor-de-cabeça de um será a eterna dor-de-cabeça de outros. A cabeça grande insistiu o quanto pôde e acabou vencida pela força da natureza, e, explodiu mundo afora. “Alguém duvida que isso seja gente”?
O telefone desligado é tão importante quanto o telefone ligado. A última ligação me fez saber que a vida nem sempre é como queremos que seja. A barba está por fazer e não estou com a mínima vontade de depilar esses pêlos faciais.
O esconderijo que descobri na infância determinou o quanto quis participar da vida. Cortina, janela, cobertor e cama. O monstro continua sua caminhada em câmera lenta e os fantasmas continuam assustando apenas seus perseguidores. A cinza do cigarro é teimosa e não quer cair no cinzeiro.
Estou com fome. Caminharei até uma churrascaria e estragarei ainda mais meu dente e minha vesícula. Até breve!
O apetite foi saciado, as pernas consumiram energia suficiente pra se manter algumas relações sexuais, a cabeça pensou absolutamente nada, o grupo de desportistas continuou hospedado nos colégios públicos, o taxista velho continuou o cochilo dentro de seu carro, a dona da banca de jornal continuou a sorrir para os fregueses, o capuccino continuou fraco e com o mesmo preço, a subida até minha casa continuou íngreme e sem piedade.
O menino que se escondia debaixo das mesas e atrás das cortinas continua o mesmo menino que se escondia debaixo das mesas e atrás das cortinas. Meus dentes estão apodrecendo aos poucos. Usarei dentadura ou me alimentarei apenas de sopa? A janela está aberta e o som lá de fora não atinge meus ouvidos. A chuva era bem mais interessante que a enxurrada. A represa construída de terra não suportava a força da água. A janela e a cortina escondiam o menino. O caminho de cada um é o caminho de cada um. O palito de madeira procura por restos de carne entre os dentes e encontra restos de carne entre os dentes. E o dente dói, dói e dói. Não suportaria usar dentadura.
A Aspirina que me tira a dor é a mesma que me enche de esperança – salve, então, o Laboratório Bayer!
O menino medroso cresceu como menino medroso. Não se escondeu mais sob mesas ou atrás de cortinas, no entanto, fortaleceu seu espírito egocêntrico. Tratou de encontrar outro esconderijo mais humano, e assim iniciou uma carreira com que jamais sonhou. O luto estava decretado: morte para sempre. Ser humano é não ser você mesmo. Obs.: a dor de dente passou! Tentei ser criança e não consegui. O monstro de andar gelatinoso consumiu todas as minhas atitudes infantis. Chorar sozinho debaixo da cama, não adiantou. Chorar sozinho atrás da cortina, não adiantou. O monstro de andar gelatinoso acompanhou cada passo desse menino medroso. Não existia mais a caverna escura. Não quero narrar minha infância, pois aos olhos de quem me olhava, parecia que eu era uma criança normal.
Tentei ser rebelde e não consegui. Tentei ser drogado e não consegui. Tentei ser jogador de futebol e não consegui. Tentei ser estudante e não consegui. Minha barba crescia para encobrir a face odiosa de um ser sem identidade. Esconder o que era transparente parecia paradoxismo. Como disse uma mulher fantástica que passou pela minha vida: “Matemos, então, esse diabinho!”
O diabinho não morreu, ele cresceu e se fortaleceu. Nunca gostei de eletrônica, mecânica ou qualquer outra tecnologia exata. Utilizar os feitos da ciência é muito mais prazeroso. Participar desses feitos, nunca fora minha especialidade. O diabinho não morreu. Estudou o suficiente pra nunca mais estudar. Não gosto de telefone. Causa a esperança que ainda estou vivo. O menino medroso cresceu como menino medroso. Mimar o menino medroso. Acreditar no menino medroso. Aceitar o menino medroso. O diabinho não morreu. Ensaiar algumas palavras desconexas em algum texto poderia ser útil ao menino medroso, e ele escreveu, escreveu e escreveu. E o que parecia ser o início de uma nova temporada se transformou em material próprio pra fogueira. O diabinho não morreu.
Alguns dias se passaram e continuei o mesmo desconexo de sempre. Lembre-se que já não preciso dramatizar.
Pensei que algumas horas de sono iriam me trazer de volta ao mundo. Triste engano! Eu deveria saber que nunca estou nesse mundo, aliás, não estou em mundo algum. O edredom até que esquentou meu corpo. O travesseiro até que manteve minha cabeça leve. A luz do banheiro permaneceu acessa. Não gosto de dormir na escuridão. Não encontro a saída. Não encontro a entrada. O corredor está cada vez mais estreito. É o fim... Tento fazer uma retrospectiva de minha vida e não encontro um ponto de partida. Desistir no meio do caminho foi o meu lema. Nunca dei continuidade a nada. O menino medroso fracassou. Poderia ser como os outros, mas não, o rebelde, o mimado não poderia ser igual a ninguém. O menino medroso, rebelde e mimado nunca soube o que realmente faria de sua vida.
Era uma vez um menino chamado Irineu. Nasceu e cresceu como tantas outras crianças. Sempre soube que um dia estaria sozinho e por saber que um dia estaria sozinho resolveu se esconder debaixo da mesa da cozinha de sua casa. Também se escondia atrás da cortina da sala. Nunca ninguém lhe chamou de Junior. Subia e descia do telhado de sua casa e mesmo assim tinha medo de altura. A casa da “Branquinha” ficava no fundo da casa. Ela comia alface e se mantinha perfeitamente limpa. Minha irmã se considerava dona da “Branquinha”. Eu gostava do quintal de minha casa. Nele não havia terra. As lesmas morreram devido ao meu experimento. O banheiro de casa era feio. Depois de muito tempo instalaram uma pia no banheiro.