Sem pé nem cabeça
1ª Parte
A obra morreu. O “homem” morreu. A pena ressuscitou.
2ª Parte
Não, eu não devo e não quero declarar o meu nome. Muitos procurariam o significado e até a origem, talvez para desvendar esse mistério, que lhe garanto, não é mistério, e sim, imortalidade, enquanto outros negariam plenamente a minha existência. Pobres nominalistas!
A espécie humana – toda a espécie humana – é naturalmente simbolista – são raras as exceções –, e o nome simboliza o caráter em primeira instância. Porém, e este “porém” é sólido e resoluto, visto que não sou humano, devo e quero omitir-lhes meu nome.
Os humanos – essa maldita espécie! – também nos classificaram, toda a nossa espécie, todavia, e este “todavia” é em sinal de protesto, entre nós o código de honra – isso existe por cá? – é não admitir esta classificação, mas ela existe, ao menos segundo vocês. Como humano que é – toda a espécie – você deve estar com a “pulga atrás da orelha”, se perguntando: “Qual será o seu nome?” Acredito, aliás, tenho absoluta certeza que você já me colocou um nome qualquer: Amanda, Orfeu, Penélope, Álvaro… e com o nome, claro, já me “sexualizou”. “Será homem ou mulher?” Para matar a sua curiosidade me atrevo a dizer-lhe que sou homem e sou mulher; e não sou homem, nem mulher. Não, eu não sou assexuado. Não, não e não, eu também não sou andrógino.
Nesse instante, e mudo de parágrafo apenas para acrescentar mais espaços em branco, pensei: “Nem bem saí de minha caverna, e, entretanto, nas primeiras páginas em que contacto o humano – toda a espécie – e então, já me confundo com eles, classificando e reclassificando tudo”.
Durante o transcorrer dessa obra, aliás, esta é minha primeira obra literária (assinada por mim, porém, sem nome), devo nomear algumas personagens, pois estas são conhecidas por seus nomes, e eis aí em mim a influência da humanidade. O que fazer? Estou ou não estou entre vocês? É a transferência de hábitos e até de gestos. Será que terminarei esta obra com propostas humanas?
As palavras são tão importantes que sem elas nem mesmo eu existiria. Contradição? Pois é. É fascinante se deixar contradizer. A “imutabilidade” é fiel aos fiéis, e isso não é o meu caso. Acaso não pensasse, aí sim, estaria um “imutável”. Muto, pois tudo muta, assim como a verdade, que é efêmera, e nada mais é, ou será uma mentira no futuro? Sem opiniões ranzinzas e radicais, embora defenda as minhas palavras com “unhas e dentes”, aliás, sem violência corporal. Moléculas vivas; moléculas mortas. Enfim, é gostoso contradizer-se, pois isso gera polêmica, e esta é saudável a todos os reinos: mineral, vegetal, animal e outros tantos.
Palavras, símbolos, ora! saibamos usá-los, apenas isso, e por ora basta de explicações, afinal, nada quero explicar, apenas relatar. Sei que explicarei muitos pormenores ou “pormaiores” nesta obra, porém, não lhes devo justificativas, se sim, ou se não… fecho aqui este pormenor, ou seria este, o “pormaior?”
Eis um “pormaior”: chego até aqui preocupado (a) em saber se estou sendo claro ao leitor, afinal, esta é minha primeira obra, e se não agradar, será a última.
Eis outro “pormaior”: disseram-me que um escritor, o que não vem a ser o meu caso, necessita publicar um livro bem grosso, sendo assim, o encherei de lingüiça até o final, assim prometo.
3ª Parte
Descrevo sem detalhes o meu raio de visão: caderno espiral, formato de um quarto, noventa e seis folhas, vinte e três linhas pretas; Moderno Dicionário da Língua Portuguesa (Michaelis); bancada de aglomerado de madeira, cor creme, proteção de metal preto ao seu redor; três aparelhos telefônicos, sendo que dois possuem fax; imagem de Nossa Senhora das Dores em gesso – não é minha -; calendário anual (2003); um copo de plástico, vazio, que antes estava cheio de café; cigarros (Hollywood Red); isqueiro pequeno (Bic azul); cinzeiro preto; adesivo de um anjo da guarda – não é meu -; três janelas de metal e vidro, e estão abertas, pois o calor está insuportável; apenas a copa de uma árvore pata-de-vaca; dois postes de iluminação; um prédio antigo que serve como escola – será tombado. Não consigo distinguir mais nada, pois estou quase cego, e mais, está muito escuro lá fora.
Li muitos livros onde os autores descreviam com detalhes o local em que se passava a cena, e mais, ousavam em detalhar as personagens: características físicas, gestos, traços psicológicos, enfim, era a palavra que substituía a imagem.
Não, eu não devo e não quero declarar o nome desta cidade. Muitos, e esses “muitos” seriam os habitantes desta localidade, ririam ao saber que fui eu que escrevi esta obra, embora não saibam exatamente quem sou, afinal, não sou, apenas sou, imortal. Privacidade, apenas isso.