Fruto da ironia divina

Provavelmente o amor, como sentimento sublime e imaculado, não existe. Cria-se a impressão de que as sensações que se irradiam sobre o corpo, quando nos sentimos supostamente apaixonados, sejam sinais evidentes de um estado de amor. Não, não o são. Convencionou-se estereotipar as pessoas assim envolvidas como símbolos e personagens de contos românticos. Não, não o são.

Se o tempo parasse e com ele pudéssemos analisar cada célula e cada pensamento veríamos que estaríamos diante de uma situação ambígua, ou seja, nosso corpo falaria a verdade química desse sentimento e nossa mente diria o que se passa realmente com o nosso ser.

O amor é um sentimento instantâneo e frágil. Dura exatamente o tempo que convém ao interessado. A magia inicial que encobre defeitos, cicatrizes e edemas acaba logo que a visão é restabelecida.

O amor é um estado de espírito corrompido pelas conveniências humanas. O amor surgiu a partir da criação dos deuses.

O relacionamento “para sempre” jamais existiu. O homem não deseja realmente conviver para sempre com a mesma mulher. A mulher não deseja realmente conviver para sempre com o mesmo homem. O homem não deseja realmente conviver para sempre com o mesmo homem. A mulher não deseja realmente conviver para sempre com a mesma mulher. Criaram-se, então, os relacionamentos convenientes, onde um apenas suporta os defeitos do outro e se aproxima deliberadamente de suas virtudes. Não existe o amor “para sempre”. São apenas momentos de prazer mútuo. As demonstrações aos poucos vão se exaurindo. A conveniência impera sobre todos os sentidos.

O egoísmo, o orgulho, a soberba, a cobiça, a luxúria são ingredientes normais que se destacam no pensamento de cada ser. Se esses componentes do nosso dia-a-dia fossem contabilizados para qualquer julgamento final, não sobraria um humano para responder como inocente diante do grande júri. Ou seja, não estamos apenas pecadores, não, somos naturalmente pecadores.

Deus não ousaria criar novamente um ser com as mesmas características humanas. Somos a criatura falida. Criar um demônio e sua legião foi a maneira mais sutil de se condenar devido a um ato falho.

Mesmo aos prantos confesso que todo amor é conveniente. Seja lá qual for esse amor.

Palavra que expressa um sentimento sublime e nobre. Nada disso. É o mais vil dos sentimentos.

Mesmo parcialmente transparente, o amor sempre será mascarado na sua totalidade. Mesmo que a verdade não consiga se esconder aos olhos da verdade, a verdade custará a aparecer, mas aparecerá. Surgirá das cinzas, das flores, do céu azul, do alvorecer tempestuoso, do canto dos pássaros, das vozes roucas, do silêncio, mas aparecerá. Não há amor “para sempre”.

A gordura, a magreza, as rugas, os cabelos brancos, a calvície, os dentes cariados, o odor fétido dos pés, a barba por fazer, os pêlos nas narinas e nas orelhas, as celulites, o roncar, o bruxismo, a flacidez, os arrotos, as defecações, o urinar fora do vaso sanitário, as flatulências, as dores de cabeça, a falta de ereção, a não lubrificação vaginal, as unhas mal feitas e roídas, a insônia, o medo, o arroz queimado, o feijão azedo, o cheiro de gás, a conta-corrente estourada, as fezes do cachorro, a louça mal lavada, o banho demorado, o mau hálito, a cera nos ouvidos, as insinuações, o comportamento, a defesa, o ataque, a nítida impressão, a acomodação, o desinteresse, a culpa, a desculpa, o exagero, a apatia, o desprezo, o desassossego, a incompatibilidade, o imediatismo, a prorrogação, a desconfiança, o desequilíbrio, a imaturidade, a intolerância, a indelicadeza, a insatisfação, o desprazer, o acumulado, a insatisfação, a ingratidão, a desesperança, a acusação, a petulância, a arrogância, a prepotência, a insegurança, a desilusão, a obstrução, a finalidade, enfim, a falta de tudo o que poderemos encontrar num novo relacionamento.

Somos frutos de uma catástrofe que se costuma chamar de “Plano de Deus”. Sou fruto dessa ironia.