Créunica* - E o fetiche brasileiro pelo masoquismo

“Na dança créu tem que ter disposição. Na dança créu tem que ter habilidade. Pois essa dança ela não é mole não. Eu venho te falar: são cinco velocidades. A primeira é devagarzinho, é só aprendizado. È assim, ó: Créééééééééuuuuuu”. Créééééééééuuuuuu. Créééééééééuuuuuu“.

A mocinha desinibida faz beicinho, requebra o corpo cheio de sensualidade, alterna os punhos cerrados com a cintura num frenético exercício de vaivém. O rapaz sarado, sem muito remelexo (diga-se de passagem), num estilo Robocop tenta acompanhar a moça. Desengonçado, o chefe de família libera a libido adormecida. O vovô e vovó assanhados, muito mais lentos (é claro!), sorriem maliciosos. A dama da sociedade escondida num canto, em catarse, trepida o corpo.

O Créu tá aí, não adianta negar: é o maior sucesso na nossa prolifera temporada musical. Seja nas rádios, emissoras de Tv, programas de auditórios, festas de famílias, em bailes, em comemorações esportivas, em gozações (com perdão do trocadilho, se isso for um trocadilho) etc etc, tudo que se vê, ou melhor, se ouve e se quer: é Créééuuu. A expressão tornou-se um mantra, um canto Dionísico, uma ode, uma entidade mística. Só no Google há mais de 1.140.000 milhões de páginas em português. No Youtube proliferam os vídeos de anônimos dando e levando créu.

A simplicidade da letra que simula a execução do ato sexual em ritmos diferentes ao som do créu, créu, créu, até chegar a inacreditável velocidade de número cinco, tudo isso permeado por um tom de brincadeira aliado a uma boa dose de desafio, contribuiu para que a música caísse no gosto do povo e dos não tão povo assim. Atingir a velocidade cinco hoje em dia é a maior ambição nacional, é nível de excelência - embora já haja alguns fanfarrões que chegam a jurar de pés juntos que, mediante a treinamento excessivo, facilmente conseguem ultrapassar essa marca. O Créu é prova de fogo para as pulsões eróticas brasileira.

*****

A dança Créu espelha uma geração que cresceu com os sucessos do axé music repletos de coreografia erotizadas, como é o caso da música “Na boquinha da garrafa”; e sintetiza quase todas as canções românticas dos anos 90 para cá, como os pagodes melosos que quando não falam de um créu inesquecível, remetem a falta deste; e se enquadra numa tradição musical brasileira vocacionada ao erotismo, caracterizadas pelos ritmos e danças quentes desde do tempo do maxixe, das marchinhas carnavalescas, das músicas nordestinas de duplo sentido e de nossa dita MPB em maiúscula, mas sem recorrer a eufemismo poéticos do tipo:

“Sei lá, o que te dá, não quer meu calor. São Jorge, por favor me empresta o dragão. Dragão! Mais fácil aprender japonês em braile, do que você decidir: se dá ou não...” **

“Quem dera ser um peixe, para em teu límpido aquário mergulhar. Fazer borbulhas de amor pra te encantar, passar a noite em claro, dentro de ti. Um peixe, para enfeitar de corais tua cintura, fazer silhuetas de amor à luz da lua. Saciar essa loucura dentro de ti”. ***

“Me agarrei nos seus cabelos, sua boca quente pra não me afogar. Tua língua correnteza lambe minhas pernas como faz o mar. E vem me bebendo toda, me deixando tonta de tanto prazer, navegando nos meus seios, mar partindo ao meio não vou esquecer.” ****

*****

Como foi na ditadura com clássicos como “Pra não dizer que não falei das Flores” de Geraldo Vandré ou “Cálice” de Chico Buarque, e como é hoje e no futuro ainda continuará sendo, a música é um produto histórico do seu tempo pela qual é possível tecer considerações e refletir acerca dos anseios e desejos existente no seio duma sociedade, como bem alertou o jornalista Rodrigo Faour, autor do livro “História Sexual da MPB”: “Não sei se você já se deu conta, mas a música popular brasileira tem uma fantástica vocação para a crônica de costumes. Podemos contar a história do país por meio dela; não só a política, econômica ou social, mas também a amorosa e sexual”.

Então, o jovem Sérgio Costa, popularmente conhecido como MC Créu, profetizou, às avessas, o que muitos dos nossos intelectulóide não conseguiram visionar. O rapaz acertou em cheio, bem na mosca. Trouxe a tona o fetiche brasileiro pelo masoquismo. Revelou o que estava por trás da apatia tupiniquim. Na verdade, a tara é por umas boas pancadas. Gostam mesmo é de sentir prazer ao ser maltratado. Só assim é possível entender a disposição em levar tanto créu com um sorriso estampado na cara

1) O Brasil ocupa a nona posição no ranking de países com maior taxa de analfabetismo da América Latina e do Caribe, segundo levantamento elaborado pela Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe). De acordo com a UNESCO, as estimativas são cerca de mais de 14 milhões de analfabetos; 2) A saúde apodrece, nos hospitais milhares morrem sob os olhos da indiferença do Estado; 3) Nos últimos 20 anos o número da violência cresceu 237%, segundo pesquisa divulgada pela ONU. Se somarmos todas as vítimas do terrorismo em Israel, Palestina, Egito, Arábia Saudita, Irã e Iraque, não chegaremos sequer à metade do número de vítimas da violência em nosso país; 4) Anualmente, a corrupção endêmica no país, custa aos nossos bolsos uma quantia de 380 bilhões de reais; 5) Pelos menos 50 milhões de brasileiros vivem em estado de indigência. Ou seja, mais de 29,26% da população do país não conseguem atender minimamente as suas necessidades diárias. Tudo isso, porque somos a nona economia mundial, mas temos a quarta maior concentração de renda do planeta. Vamos parar por aqui, ok?

Como o próprio Mc exorta na música: “É Créu neles!”. Ou pior: em nós. Haja masoquismo. Dessa: eu estou fora.

*****

Post-scriptum. Papai e mamãe, irmãos e irmãs, vovós e vovôs, tios e tias: crianças não devem dançar o “Créu” e nem tantas outras músicas com letras apelativas que tratam de sexo, pois a forte carga erótica aliada a coreografias sensuais estimula elementos que não são adequados para as elas, induzindo-as a comportamentos inadequados que contribuem para precocidade sexual. De fato, outros fatores também devem ser considerados.

Davidson Davis

* Créunica – Expressão sugerida pelo amigo Paulo Marcel

** Se – (Intérprete e compositor: Djavan)

*** Borbulha de Amor – (Intérprete: Fágner e Composição: Ruan Luís Guerra)

**** Eu Que Não Sei Quase Nada do Mar – (Intérprete: Maria Bethânia – Composição: Ana Carolina e Jorge Vercilo)

Davidson Davis
Enviado por Davidson Davis em 03/07/2008
Código do texto: T1063437
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.