Você tem medo do que ? (Maria Mal-Amada)
Crônica extraída do livro Maria Mal-Amada
de Lorena de Macedo
Tenho medo dos estalidos noturnos. Barulhinhos irritantes que aparecem convenientemente quando apago a luz do quarto para dormir. A impressão que dá é que assim que a luz se apaga e eu deito na cama os outros seres que habitam meu quarto saem de seus cantinhos para passear pelo chão. Pensei em escrever aposentos ao invés de quarto, mas tenho o costume de vincular o termo à idéia de donzela. Não sou nenhuma donzela e meu quarto não está na torre mais alta de um castelo inacessível, então esqueci do aposento.
Às vezes tenho medo de amar. Por mais que eu queira ser amada e reclame constantemente da minha patética solidão, é dificílimo lidar com o fato de que podemos perder quem mais amamos. Na verdade, há menos que eu morra antes de todos os meus amores, ainda vou sofrer muito. E não falo apenas de morte, mas de qualquer tipo de perda causada pela distância indesejada, ou desejada. Podemos estar bem perto, mas se não houver cumplicidade, ainda sim estaremos perdidos um do outro.
Tenho medo de não me tornar a pessoa que um dia desejei para mim mesma. Será que já sou tudo aquilo que tenho pra ser e não há mais espaço para nada? Prefiro acreditar que posso me reinventar sempre que quiser, evoluir e melhorar. Sua família espera muito de você? Você espera muito de si mesma? O medo de fracassar é tão grande quanto qualquer pavor causado por uma situação real.
Medo. Tenho medo de me tornar uma velhinha encurvada, gordinha e de cabelos bem curtos e raleados. Quero ser um exemplo de velhice saudável. Uma mulher atemporal. E por mais que eu lute contra minha vontade de ficar em casa nas noites de sábado, sei que vou acabar rodeada por livros, cachorros e caixas de sucrilhos.
Velhos comem sucrilhos? As pessoas vão passar por mim e apontar o dedo dizendo “Olha a velha doida que mora na minha rua! Ela tem 10 cachorros e 3 três tipos diferentes de peruca. Às vezes ela varre a calçada só de camisola”.
É saudável sentir um pouquinho de medo diante de certas situações. Afinal de contas, é o medo de ser presa que me impede de socar certos sapos disfarçados de príncipes que resolvem armar a barraca no meu terreno de vez em quando. Posso ser processada por lesão corporal porque os socos seriam muitos, talvez até alguns chutes e pauladas pra compensar a perda de tempo.
Você tem medo de sentir? Eu tenho. Tenho pavor de sentir aquela saudade doída e indecente que se instala em todos os poros da pele, em cada curva do corpo, em todas as viradas, cruzamentos e paradas da vida.
Tenho medo de não conhecer o Egito antes que o mundo acabe. Queria ver a Esfinge de perto ao menos uma vez. Queria ver tanta coisa! Mas tenho medo de não conseguir. Fico me perguntando como pode alguém com instrução, acesso a informação e certo grau de inteligência não queimar por dentro com a vontade de conhecer as maravilhas desse mundo. Conheço muitas pessoas desse tipo.
Já ganhei o beijo perfeito que começou pelo canto esquerdo da boca e foi levado com delicadeza para o meio dos lábios, terminando com um sorriso de satisfação e uma professa de verdade. Já senti meu rosto formigar de vergonha enquanto meu coração esgoelava dentro do peito pedindo para ser ouvido. Tudo isso me conforta e me faz sentir menos medo, pois se nada mais valer a pena, as lembranças desses momentos serão suficientes...
Também tenho medo de coisas absolutamente ridículas. Muitas mulheres da minha família passaram a vida inteira com problemas de micose nas unhas do pé, e eu tenho medo disso. Será que é genético? Medo de nunca conseguir dirigir na rodovia, medo de ter filhos orelhudos, mesmo sabendo que vou amá-los de qualquer maneira.
O medo da depressão. Medo de enlouquecer com o famoso vazio inexplicável. Medo de depender de um monte de remédios homeopáticos para conseguir sorrir e agüentar viver um dia inteiro. Fui ao psicólogo uma vez. O doutor especialista em todo tipo de doideira me deixou esperando durante 1 hora e 47 minutos. Cheguei a pensar que toda aquela espera não passava de um teste de paciência, uma prova de fogo só pra ver se eu era capaz de ter um surto nervoso dentro do seu consultório. Talvez houvesse câmeras escondidas dentro do cubículo rosa-seco habitado por uma recepcionista estranhamente eufórica.
Depois de toda a espera, descrevi dramaticamente minhas crises existenciais. “Nada de anormal” foi a frase mais célebre que conseguiu dizer. Saí de lá com a receita de algum calmante natural que eu nunca mandei manipular e a minha melhor cara de emburrada. Como pode alguém dizer que eu, no cúmulo da minha dramaticidade, não tenho nada de anormal!
Posso me sentir um pouco menos medrosa por saber que todo mundo tem medo de alguma coisa. O medo impõe limites, cria amarras, acomoda e reprime. Mas está longe de ser o pior dos sentimentos.
O pior dos medos é o pavor de não sentir medo de nada. Por que se não há nada a temer, se não há nada pra perder, quer dizer que você não ama, não é amada, não tem família, não possui ilusões, não acumula manias bonitinhas e neuróticas, não é lembrada e não tem sonhos.
Sinta medo para aprender a dar valor ao que se tem. Só não exagere porque o extremo de qualquer coisa será sempre ruim, até mesmo quando essa coisa for boa.
Maria