A carregadora de sonhos
Publiquei o texto que postarei abaixo, no fotolog, um espaço virtual, adolescente e bobo, que frequento justamente por estes motivos, pela ocasião da morte de uma tia, a mais velha. Restam das lindas filhas de "Seu Orlando" apenas duas.
Chorarei por suas vidas e não por suas mortes, como alguém chorará por mim. Quando morremos, eu creio, em nosso semblante transparecem as coisas que não fizemos, que nos fizeram falta, que nos deixaram.
Com vocês, o texto:
Chorei pela vida de Jacira e não por sua morte. Sofrendo muito, morrer fisicamente foi uma gentileza de Deus.
Mas, não foi gentileza alguma lhe haverem matado a alma aos 17 anos.
Moça, bonita de doer na vista - como se dizia muito antigamente - prendadíssima em todas as artes (artista por natureza fazia chapéus, bolos decorados, bordados finíssimos, richelieu, crochê e tricô, salgados finos, bufês delicados), só não foi artista na arte de dizer não ao absurdo, a interferência perniciosa, ao abuso.
Aos 17 ela tinha um noivo - que não era lá essas coisas, mas naqueles idos de 1930 e poucos, as moças noivavam - e vivia sonhando com o dia de casar, ter sua própria casa, seus filhos. Sonho pequeno, de toda moça quase. O pai dela, um dos raros sujeitos pra quem não tenho nenhuma definição - meu avô, infelizmente - obrigou Jacira a desmanchar o noivado, abrir mão dos seus sonhos, a recuar a dois passos do paraíso. E ela, obedientemente burra, o fez.
Já disse que o noivo não era lá essas coisas. Lamentou-se por alguns meses, chorou pitangas, mandou cartas líricas, mas não deu dois anos casou com outra - um casamento infeliz de onde restou um filho triste - e depois com outra.E ainda a acusava de covarde, de não ir com ele, de ficar com ele. De certa forma a acusava de traidora, o cachorro.
Ele a chamava, é certo, chamava. Mas, chamava do alto da árvore, de lá longe no mar. Mas, uma vez recebida a ordem do pai tirano, da vida ingrata, Jacira não sabia desobedecer, nem lutar pelo que queria; nem gritar, nem protestar.
Chorou e trabalhou incansáveis 57 anos, criou filhos alheios de mãe bem viva - a coisa mais improdutiva que se pode fazer - trabalhou como a moura torta da estória, sofreu de uma solidão tão imensa que não há palavras para nomeá-la, e da qual eu sou testemunha involuntária (no Natal tinha medo dela, seus olhos ficavam tão profundos que era possível morrer afogada neles).
É certo que depois de 57 anos ela se casou com esse mesmo noivo, que agora duplamente viúvo, e com o pai de Jacira morto e enterrado, teve finalmente coragem de pedir, aliás vir para levá-la, como deveria ter feito e não fez...ela tinha 69 anos e ele 70.
Foi bonito, mas desastroso. O sonho não volta, não ressuscita. E quando se tenta ressuscitá-lo acaba em zumbi, morto-vivo perambulando, fedendo; nunca o mesmo sonho com perfume de primavera.
Jacira nasceu em 1º de março de 1923 e morreu ontem 29 de novembro de 2007, carregando consigo, quem sabe, seus sonhos.