Ainda muito pequena, na igreja matriz de Miracema- RJ, fui acompanhar meus irmãos a uma das aulas de catecismo. Ao falar sobre pecados, a moça disse que nós os cometíamos quando brigávamos, quando tínhamos raiva dos outros, quando xingávamos... Para arrematar, ela falou que nessas ocasiões nossos coraçõezinhos ficavam pretos. 

Fiquei preocupadíssima com a cor do meu, que, em minha opinião, estava cinza. Isso porque na véspera, meu irmão mais velho me matara de ódio ao me entregar um “presentinho” (uma caixinha de fósforos, primorosamente embrulhada, contendo um besouro preto) e eu gritara: “MãeeÊ, olha o Lilinho!”, fazendo-o tomar uns tabefes. Ainda naquela manhã, o irmão nº 3 me enfurecera apelidando-me de “Maria Maçaranduba” e eu berrara: “MãeeÊ, olha o Nedinho, aqui!” e ele tomara uns tapas, também. (Mamãe era expert nisso.). 

Aquilo me marcou bastante e fiquei boa parte de minha vida procurando ser legal com todas as pessoas para que meu coração fosse sempre vermelho como aqueles que eu via desenhados nos cadernos das meninas mais velhas. 

À medida que cresci, continuei buscando ser assim, não mais por causa de cores, mas porque aprendi que os “FDPs”, (que, provavelmente, têm corações pretos, marrons ou roxos), quando fazem “filhadaputagem” conosco, querem que sejamos iguais a eles, mas isso eu me nego a ser. 

Como tenho um feeling muito apurado em relação ao caráter das pessoas, logo descubro suas colorações internas e as catalogo em gavetinhas etiquetadas assim: pretos = safadeza, marrons = egoísmo, roxos = maldade, amarelos = dubiedade, laranjas = vibração, azuis = camaradagem, verdes = imaturidade, rosa = arrependimento, vermelhos = bondade, brancos = calma... . 

Às vezes eu tonalizo: preto-desbotado, marrom-claro, roxo-batata, amarelo-diarréia, verde- da-silva, laranja-desespero, azul-celeste, rosa-bebê, vermelho-escarlate( bondade+ decência+ humildade)... 

Ontem à noite, ao chegar cansada do trabalho, ainda antes de banhar-me, ouvi na TV: Dona Rute morreu! Rute? Que Rute? Pensei. Antes mesmo que eu deduzisse, o repórter informou: a ex. primeira dama do Brasil. De quê? Do coração! Então, lembrei-me daquela aula de catecismo e recordei-me de que eu a havia catalogado entre os escarlates. 

Só poderia ser assim! O que pensar de uma mulher que em vez de se “plastificar” e de “se achar” por ter sido esposa do Presidente da República, durante 08 anos, preferiu cuidar de questões sociais e instituir o programa “Comunidade Solidária, originando o “Alfabetização Solidária”, o “Universidade Solidária”, o “Comunidade Ativa e Capacitação Solidária”, o “Bolsa Escola” e o “Bolsa Alimentação”, todos precursores do “Bolsa Família” do governo Lula? 

Sua humildade a impedia de ficar alardeando o seu currículo invejável: escritora, doutora em Antropologia, docente e pesquisadora na USP, atuou na Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso/Unesco), na Universidade de Santiago do Chile, na Maison des Sciences de L'Homme (Paris), na Universidade de Berkeley (Califórnia) e na Universidade de Columbia (Nova Iorque). 

Olhando minhas gavetinhas, vejo que os escarlates estão minguando, talvez por terem imensos corações. Enquanto isso, os tons nojentos só querem sair se for para emporcalhar o arco-íris. 

Não sei por que isso ocorre e não quero brigar com Deus. Acho que Ele permite que os tons escuros fiquem até aprenderem a ser escarlates também. 

P.S. E a “filhadaputagem” deixa isso acontecer? É ruim, hem!!