SABER ALHEIO

“Detesto o sábio que não é sábio

por si próprio” (Eurípides)

Lendo os Ensaios de Michel de Montaigne, deparei-me no Capítulo XXV, que trata do pedantismo e da arte de pilhar o saber alheio – uma carapuça que, pensando bem, me cabe direitinho -. Senão vejamos: reconhecendo o óbvio, isto é, que não sou sábia, mas sim, mendiga do saber alheio, confesso que quase nada tiro de mim; o que faço na maior parte dos meus escritos é filar aqui e ali, deste e daquele livro, as sentenças que me agradam a fim de transportá-las, a meu modo, para os ditos escritos . E de tanto me apoiar nos outros vejo-me dependente. É a tal história: quero fortalecer-me contra o temor da morte? Recorro a Sêneca. Tenho a intenção de arranjar consolo para mim e para os outros? Vou a Cícero.

O que EU escrevo? O que EU penso? O que EU falo? Pelo visto um papagaio poderia muito bem me substituir... Diz Montaigne que, para abrigar tantos e tão grandes pensamentos dos outros cérebros, é necessário que o próprio cérebro se contraia, se restrinja, se comprima para dar espaço ao que recebe de outrem. E exemplifica: assim como as plantas morrem por excesso de seiva e as candeias se apagam com abundância de azeite, os espíritos curvam-se e se ancilosam sob o peso dos estudos e das matérias com o que os encheram e que eles não puderam deslindar

Indaga Montaigne: que adianta ter a barriga cheia de comida se não a digerimos? Se não a assimilamos, se não nos fortalece e faz crescer? Lembra ele a história de um rico romano que à força de dinheiro se aplicara a recrutar homens versados em todos os ramos da ciência e os tinha sempre à sua volta; e quando, com seus amigos, tinha a oportunidade de falar qualquer coisa eles o supriam em sabedoria, um lhe soprando uma réplica, outro citando um verso de Horácio, cada qual segundo sua especialidade. Com o tempo chegara a acreditar que o saber e seu porquanto o tirava de “seus” homens, agindo, assim, como aqueles cujos conhecimentos moram nas bibliotecas suntuosas de sua propriedade. Ou ainda, como um outro que ao ser indagado acerca do que lhe cumpre saber, vai logo buscar um livro para mostrar e jamais ousaria dizer que tem o traseiro sarnento sem previamente procurar em dicionário a significação de sarna e de traseiro.

Pois é, nem eu duvido que a carapuça me cabe; basta olhar para essa danação de livros à minha frente e do Google dirimindo dúvidas ao simples toque das teclas do meu computador.

Zélia Maria Freire
Enviado por Zélia Maria Freire em 30/06/2008
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