Crônica dos decapitados

Convivi, na minha faixa etária de um só dígito, com uma imagem apavorante. Na verdade – aqui pra nós, que ninguem nos ouça – até há algum tempo ainda tremia ao ver aquelas fatídicas imagens mutiladas nas vitrines das lojas.

Bonecos de tamanho natural, sem cabeça, às vezes sem braços, invariavelmente sem pés em cujo local – onde deveriam estar – eu via ferros cromados, fixados a um suporte quadrado.

Pior quando era obrigado a parar em alguma daquelas lojas, justo no momento em que as simpáticas balconistas trocavam as roupas dos manequins de plástico.

A simpatia, a bem da verdade, me remetia a um crescimento de terror. “Que menininho bonito, olhinhos verdes... Quer me ajudar a trocar a roupa?”

Com certeza, a dela, eu teria aceito se tivesse uma década a mais de existência, o que não era o caso. Eu cerrava as pálpebras, virava de lado ou saía de perto. Antes, porém, tratava inconscientemente de gravar bem a cara do carrasco travestido de meiga mocinha bonita para evitar um encontro casual em outro local. Quem sabe ela iria me transformar também numa criatura monstruosa, talvez um corpo sem braços e, no topo do pescoço sem cabeça, um grande olho verde que havia sido elogiado.

Aos poucos – um degrau a cada ano, provavelmente – fui me afastando do terror dos decapitados. Ou, pelo menos, aprendendo a conviver com aquelas imagens que passaram a se exibir somente em alguns dos meus pesados pesadelos anuais.

Enfim, como foi comprovado que havia vida inteligente na Terra, alguém teve a idéia de remontar os manequins, assemelhando-os a pessoas, com cabeça, tronco e membros. Só que – admirável mundo novo! – todos com as mesmas caras, fossem masculinos ou femininos.

Suspirei aliviado ao constatar o avanço e me aproximei para certificar-me da constatação. O arrepio rolou solto coluna abaixo quando vi que os olhos do manequim eram verdes. Com certeza, a maldição do carrasco travestido de meiga mocinha bonita que me achava lindinho na loja da minha infância havia me encontrado.

Elber Suzano
Enviado por Elber Suzano em 29/06/2008
Código do texto: T1057423
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