A candeia
Naquele final de semana alguma coisa me atraiu à Piquete.
Dessa vez não foi a Festa do Tropeiro. Nem foram, os sons dos berrantes ou o ruído dos carros de bois; tampouco o friozinho gostoso da temporada de inverno e suas noites musicais. Ou ainda, os altos picos. Nada disso. O que me levou a Cidade Paisagem foi uma súbita vontade de conhecer e saber o que é um encontro de jongueiros.
Na sexta-feira, primeiro dia de minha chegada, surpreendeu-me a cidade vista à noite. Um belo cenário. Ao passar pelo pórtico, senti o peito acelerar e forte luz a ofuscar meus olhos. Talvez os faróis. Talvez.
Cheguei à praça recentemente reformada, com seus pisos coloridos, próprios do interior, com bancos de madeira cujos encostos laterais são bordados em ferro. Ao centro da bela praça, uma grande palmeira saúda os visitantes. O jeito acolhedor do local faz com que qualquer um se sinta em casa.
Uma leve névoa envolvia a praça, criando um ar impressionista nas nuanças. Entrei no grande Elefante Branco (embora alaranjado), onde fora montado um cenário de senzalas, paralelamente com fachadas de casas de antigas fazendas, parte de antigas carroças, cercas de bambus. Sons, fogo, luzes e cantos combinados traziam o passado e ofuscavam o tempo real. Por momentos, aflorava a emoção.
Havia o sincretismo, fogueiras, santos e caxambus. A proteção vinha de um altar coletivo, com São Benedito, o santo dos negros. São Miguel, o padroeiro da cidade e Nossa Senhora Aparecida.
Segui uma leve fumaça vinda lá dos fundos, a mesma que estava sobre a praça. Foi quando via a fogueira, aquecendo os tambores, para o ritual do inicio da apresentação, que aconteceria nos próximos minutos. Os homens estavam trajados de cores fortes e alegres. Algumas mulheres com cabelos trançados e saias coloridas e rodadas.
Depois de um rápido cerimonial, o apresentador fez a abertura do 12° Encontro de Jongueiros em Piquete.
Os tambores reverberam. Os portões da senzala se abrem para a História entrar em cena. A apresentação começa com a dança simbolizando a liberdade conquistada.
Ao centro, mestre Gil gira, protegido pelo círculo composto de crianças, jovens e adultos de todas as idades. Todos com o mesmo espírito alegre: os giros soltos traziam de volta ao passado geneticamente guardado.
Vários grupos vindos de diversas cidades se apresentaram, cada qual trazendo sua particularidade regional sem perder a essência de suas raízes. As estrelas, as flores, as luzes – azuis, verdes, lilases, amarelas, vermelhas – e novamente, a paz compuseram aquelas duas noites de jongos.
O domingo, último dia do encontro, chegara. Na praça, livros expostos e autores autografando; visitantes de outros estados e até de outras terras como a África e Estados Unidos. Professores e docentes de faculdades, que estiveram nos seminários, oficinas e palestras, também participaram da grande roda de jongo dedicada aos membros mais antigos.
O grande encontro cultural, as danças, os abraços, as reverências e a emoção estavam presentes nos olhos marejados.
Quis o destino que a praça tivesse o nome de um grande comandante, cujo olhar estatuado visse os outros grandes guerreiros a gritar:
- Cativeiro Já acabou! Viva Piquete!!
Terminou o encontro... Passo novamente pelo pórtico. O peito acelera. Uma súbita sensação de já ter visto tudo aquilo. Então me lembro de uma frase na camisa de um jongueiro: “Nunca é tarde para voltarmos atrás e buscarmos nossas raízes”. Silenciosamente acrescentei “Cativeiro já acabou! Mas disfarçadamente o capitão do mato metamorfizado ainda está por perto!”. Sigo pela estrada.
Meus olhos se ofuscam pelos faróis, porem não mais forte que a candeia que me acompanhou na longa noite escura... E que até hoje me acompanha...
“À Antonia Generosa de Jesus, parte de minhas raízes, dedico essa crônica.