A Morte De Mão Branca Na Fazenda de Dona Esmeraldina Gusmão

A morte do Mão Branca na Fazenda de Dona Esmeraldina Gusmão.

(Extrato de um Diário)

Há poucos dias acordei desinquieto. Sonhei demais a noite toda. De alguns sonhos não me lembro, outros se passavam nos dias antigos da infância e da juventude, ai que saudade. Então me deu, ainda muito cedo, uma vontade de andar pelo mundo, rever velhos lugares e essa vontade era como um vento que sopra uma vela, e dizia “vai, vai”. Era coisa do instinto, ou da alma, não sei, uma vontade que vinha de dentro; me deu gana de rever velhas paisagens, uma vontade irresistível, como aquela que se apossa dos bichos quando desandam a migrar, obedecendo a uma rota que seguem, mas desconhecem.

Então resolvi, até para ter um pretexto e um rumo, visitar o meu amigo Pedro Carlos Marins, conhecido como Engolefala, porque palra para dentro, baixinho, dado o hábito do cochicho, que é assim que se usa em lá em Minas, para cantar mulher, fazer negócio e tecer política.

Sempre quis ver de perto o tal gado Bhrama, o zebu americano muito criado no Texas. É animal de peso e estampa. E o Marins tem uma criação supimpa.

Minha amizade com o Marins é uma amizade antiga, coisa de mais de quarenta anos, enraizada nos tempos em que eu lidava com o negócio de gado, que foi o meu princípio de vida. Por isto aceitei o seu convite, há muito feito, e sempre protelado por uma razão ou por outra, não só por comodismo, mas por não ser muito dado a aceitar convite para ir para a casa de alguém; coisa de formação, herança de uma gente arredia, interiorana, desconfiada como que, pois assim era o povo que me deu origem.

Há muitos anos que eu não ia para os lados de Santa Bárbara do Monte Verde, um lugar meio mágico para mim, uma parte pertencente a este mundo vasto de Deus, outra situada nas lembranças de lugares ou pessoas que já não são mais os mesmos ou mesmo não mais existem. Naqueles tempos do meu início de vida, coisa de mais de cinqüenta anos – como o tempo passa, se passa! - Santa Bárbara era um sertão danado, decadente, por causa da crise do café em 29, esquecido lá num cantinho do Estado, sem estradas asfaltadas, com fazendas meio abandonadas, criando gado à solta, ao Deus dará.

Hoje se faz a viagem de carro no máximo em três horas, do Rio a Santa Bárbara. Uma beleza! Naquele tempo, para ir a qualquer lugar, era viagem de dia inteiro ou mais. Naqueles ermos se criava o gado só na base do capim, e o leite que se tirava era mais pro gasto que para outra coisa. Criava-se um gado de corte mestiço, que aos quatro anos de idade estava no ponto de corte: um boi de 22 arrobas era um boiaço, troncudo, geralmente feroz, porque ia diretamente das invernadas para o frigorífico que a Companhia Anglo mantinha em Mendes, no Estado do Rio. Para dar uma idéia, um garrote da raça Bhrama, alimentado e manejado nos conformes, já apresenta aquele peso aos seis meses de idade. É um bichão modorrento, precoce, de personalidade muito diferente dos marruazes daquele tempo. Naquela época, quem lidava com boi era vaqueiro, hoje é tratador de boi, coisa muito diferente, podem crer.

Minha família tinha uma velha casa na estrada que ia de Vassouras a Mendes. Por ali passavam todas as boiadas que vinham de Minas. Lembro-me que ao ouvir o aboio dos vaqueiros, corria para a porteira que dava entrada para o nosso pequeno sítio e nela me dependurava apreciando a boiada passar. Ficava ali extasiado, com a imaginação a mil. “Quando crescer, vou ser boiadeiro”, pensava. Vibrava vendo aqueles homens com aquelas roupas de couro, que aos meus olhos não eram campeiros, mas campeadores, montados nos seus burros enormes, cruzas de éguas campolina com jumento pêga, animais de grande porte, fortes e marchadores,capazes de rodar de um lado ao outro do mundo numa só batida, naquela marcha invariável dos animais firmes, seja no plano, na subida ou na descida. Passavam aqueles homens, que hoje ainda povoam os meus sonhos e lembranças, com um ar soturno, orgulhoso, de pouco interesse pelo mundo. Concentravam-se no controle da boiada, arisca, propensa ao estouro. Ao lado das montarias, seguiam uns cachorros enormes, peludos, cabeçudos, mestições de pastores com alguma coisa que lembra os cães fila de hoje. Seguiam a tropa de cabeça baixa, língua de fora, o olhar meio perdido, mas prontos para o arremesso rosnante sobre qualquer rês que ousasse sair da linha imaginária que a estrada representava para eles.

Numa certa altura, diante daquele espetáculo, que me dava ânsias de partir, como se no fundo de minha natureza habitasse um cigano, o menino tímido não se agüentava e perguntava para o vaqueiro mais próximo: “Oh moço, de onde é que vem este gado ?” Algum se dignava responder: “De Santa Bárbara do Monte Verde”...O nome daquela Santa protetora contra as tempestades ficou gravado na minha memória como o de um lugar habitado por guerreiros criadores de gado e amansadores de burros, seguidos por uns cães estranhos, desengonçados, ferozes e com cara de poucos amigos.

Alguns anos depois, com os meus dezessete anos, mais ou menos, eu já cuidava de minha vida. Era um boiadeiro, como sempre quis ser e de certa forma nunca deixei de ser. Não dava satisfação a ninguém, vivia do meu trabalho e do suor do meu rosto. Meu negócio era a compra e venda de gado. Era o que se chamava na época, um invernista. O invernista era um sujeito geralmente muito só, o que correspondia exatamente ao que eu era e estranhamente queria continuar a ser; vagueava pelas fazendas procurando gado magro, principalmente bezerros e garrotes, para comprar e levar para as invernadas. O bom capim, principalmente as pastagens de Gordura e de Jaraguá, também chamado de Provisório, lá para os lados dos chapadões de Minas e Goiás, se encarregava de botar o gado em boas carnes. Era um trabalho árduo, e o lucro, na maior parte das vezes, apenas razoável; porque o invernista não só comprava e vendia, trabalhava também na recuperação do gado, tratando-o, medicando-o contra os vermes, os bernes e as bicheiras, apartando os machos das fêmeas, castrando e marcando, provendo o sal nos cochos.

Não tinha nada de vida mansa. Muito antes pelo contrário: era uma vida dura e solitária. O dia todo no lombo de um cavalo ou de um burro, andando de um lado para outro, contando, fiscalizando, comprando, vendendo.

À medida que minhas relações de negócios foram se ampliando – é desta época minha amizade com o Marins, que é fillho de Chiador, mas criado em Santa Bárbara - a área por onde eu transitava, também. Em coisa de mais ou menos um ano, eu já estava negociando pelos lados de Minas. Hoje acredito que fui me chegando pouco a pouco por aquelas alterosas em busca não dos negócios, como aparentemente parecia ser, mas ao encontro dos sonhos de criança, do menino que via o gado passar e que sonhava em também, um dia, tanger a sua boiada. Seja lá o que for, a verdade é que negociava para aqueles lados, provavelmente buscando nem o que parecia ser, nem o que hoje acho que seria, mas uma mistura destas coisas todas.

Apesar das fazendas ainda terem muitos colonos naquela época, eram muito extensas, sendo comum andar-se uma ou duas horas sem encontrar-se viv’alma. Reconheço que a solidão daqueles campos desconhecidos me deixavam esperto e meio assombrado. Todos sabem, ou pelo menos deveriam saber, que ao meio dia se abrem as portas para as legiões negras entrarem em nosso mundo, como um bando de morcegos mergulhando na noite; estas legiões, antes de se esparramarem, preferem os lugares mais ermos, para se adaptarem e se localizarem face aos quatro cantos do mundo; vôam quase planando, em voltas, procurando o seu rumo, e depois se espalham, misturando-se nos locais populosos ao povo no meio das ruas. Como ninguém mais acredita nesse tipo de coisa, criação, segundo se pensa, de mentes supersticiosas, presas às crendices dos prascóvios ignorantes do passado, sua tarefa é fácil e agem em plena liberdade, cumprindo o seu destino, como cumprimos o nosso. Lembro-me que tocando uma ponta de gado que comprara ali perto para recriar nos pastos que havia arrendado de um certo João Catalano, nos arredores de Santa Bárbara, me senti meio assombrado, pois a solidão e o receio que a assombração provoca não é menos tenebrosa na hora do sol a pino do que na meia-noite, pois o que assombra não é o sol a pino ou a escuridão, mas a vastidão, pretexto para o medo real, mas inconfessável, que de uma forma ou outra trazemos dentro de nós. Ou será que não me assombrei? Seria o fruto de um olhar distorcido pelo tempo? Ou os medos eram apenas pressentimentos pelo que estava por vir? Pressentia? Não sei. Há tanto tempo...Eu, que vivo numa voltagem acima da média, estava provavelmente em algumas centenas de volts além do meu natural, e onde as pessoas só vêem a beleza triste daquelas paisagens e o leve sopro do vento arrepiando o capim, antevia, com inusitada antecedência, tal como meu cavalo que bufava de modo estranho e os passarinhos que sumiram e se misturaram ao silêncio ao ponto deste se tornar audível, o treme - treme da terra apavorada diante da tempestade que estava por vir, com as nuvens negras resfolegando e dando cambalhotas no céu, anunciando-se ainda pelo absoluto silêncio e pouco mais tarde com o distante ronco da trovoada. No ar parado, nas folhas imóveis, li o aviso e, sem alternativa, toquei a minha ponta de gado para a fazenda de D.Esmeraldina Gusmão que, por informação, sabia que, na emergência, me alugaria pasto e daria pouso. Assim, deixando a trilha mais larga, atravessei um córrego que dava vau, e me piquei em marcha batida, rumo à sede, sem destrambelhar, já que não adiantava correr, pois a distancia a ser percorrida deixaria estropiadas aquelas reses arrematadas cedo, de manhãsinha, e portanto já meio cansadas de caminhar. Tive sorte, porque tão logo pisei no varandão da fazenda, o aguaceiro, como se só estivesse esperando minha chegada, desabou. Lembro-me do barulho ensurdecedor, e da impressão de aconchego que senti ao me ver sob um teto e cercado de pessoas.

Dona Esmeraldina, mesmo sem me conhecer, me recebeu com aquela fidalguia que até hoje só encontrei nas casas mineiras; é um modo peculiar de ser, o dos mineiros - há gentileza, há mesa farta, há o queijo que ninguém - só eles - têm, e mais uma sutil reserva, que o sujeito nunca sabe se é uma ponta de orgulho, assim como uma gota de pimenta num ensopado, ou pura educação, ou mesmo, como são de falar pouco, um traço de timidez. Dona Esmeraldina sabia fazer seus hóspedes se sentirem em casa. Indicou-me um quarto amplo e arejado, muito limpo, no segundo andar do sobrado, e lembro que da roupa de cama subia um aroma de lavanda. No ar, aquele cheiro das casas com fogão de lenha, o cheiro de minha infância, que me lembra tantos lugares e pessoas queridas, tantas conversas noite à dentro na beira do fogão; como tudo escoa! Naquele tempo, a braquiária ainda não era moda, não tinha sido introduzida pela avidez humana, e as flores dos campos se espalhavam no meio do capim. Tomei um bom banho e desci para o almoço. Na mesa, como em todas as pensões, pessoas desconhecidas ou que mal se conheciam, comiam, cada qual com seu jeito e procurando assuntos triviais entre criaturas conversáveis, como se dizia antigamente. Tudo seguia como os conformes, como sempre em situações assim, não fosse o inesperado que aconteceu: “Dona Esmeraldina, ai vem o Mão Branca” quase gritou um negrinho que irrompeu pela sala. Logo se impôs um silêncio completo. As pessoas trocavam olhares, embaraçadas. Dona Esmeraldina não titubeou: “Mande ele entrar”. Por coincidência alguém, dois dias antes me falara do seu Justino, mais conhecido como Mão Branca. Era um facínora famoso, que viera meio acossado lá dos sertões além da região de Grão Mongol, bem depois de Pedras de Maria da Cruz. Um viajão de muitos dias, muito chão para se andar, daqueles confins de fim de mundo até Santa Bárbara. Vinha aperreado, evitando estradas, percorrendo veredas. Muitas mortes e barbaridades acompanhavam-no como uma sombra maldita. A última de suas maldades fora cortar com um golpe de falcão o braço de um infeliz de um comprador de pedras para roubar uma mala que trazia sempre algemada ao pulso; pois essa era a figura sinistra que entrara com um olhar de cão sem dono quando vai se chegando tangido pela fome. Com educação, explicou-se, com o maior respeito, pedindo pousada para D. Esmeraldina: “Vim tocado pela tempestade, senão não teria vindo”, ele disse. Dava para perceber que já se conheciam. D. Esmeraldina tratou-o com fria educação: “Sente-se e fique a vontade, seu Justino”, disse, e virando-se para o negrinho : “ diga à Maria Joana para botar mais água no feijão”. Mão Branca agradeceu. E sem dizer mais uma palavra, escolheu um lugar separado na mesa, sentando-se de costas para a parede da sala, e bem de frente para a porta de entrada, sobre a qual só havia, no alto, um jirau. Depois de sentar, como quem não quer nada, num gesto muito natural, colocou a parabellum bem ao lado do braço, no lugar dos talheres, ao alcance imediato da mão esquerda, mostrando que era canhoto. “Por acaso o Senhor aceita uma cerveja?” perguntou D. Esmeraldina com um jeito que não sei se era apenas solerte ou de cobra enroscada, defensiva. Pensei com meus botões: “O bicho é precavido, deve ter o sono dos perseguidos. Que vida!”. E ainda mais, pensei: “A velha não deve ter gostado de ver aquela arma assim exibida”.

Mas depois, passado o primeiro espanto e mal estar, as pessoas como que se acostumaram com aquele traste naquele canto e conversa vai, conversa vem, o clima foi se normalizando, e tudo correu para o seu natural, enquanto a chuva, generosa, caía. Dona Esmeraldina era tão naturalmente fina e educada, e tão gentil, que todos nos sentíamos em casa, ao ponto que me deu uma ponta de saudade da família. Tomado o café coado na hora, daquele café plantado, colhido e torrado em casa, que hoje quase ninguém conhece, porque este que hoje bebemos é uma boa beberagem, mas não é aquele café que então se bebia, fomos para a varanda para pitar um bom cigarro de palha, e jogar fora, de barriga cheia, mais uns dedos de prosa. Mão Branca, retardatário, continuava alheio a todos nós, comendo lá no seu canto, jogando, meio disfarçadamente, de quando em vez, um olhar de um lado para outro e também para a porta, tenso, cauteloso, nunca em paz. Estávamos nessa, distraídos, naquele relaxamento de quem já matou a fome,soltando baforadas e proseando, quando de repente ouvimos um estrondo enorme, e um baque surdo , como o de um saco de batatas quando despenca. Corremos todos para a porta da sala para ver o que acontecera e o que se seguiu. Mão Branca jazia imóvel, com a cara no chão; morreu sem ter tempo para nada e sem esboçar qualquer movimento de defesa; o tiro, disparado do jirau, de uma doze de cano cerrado, daquelas que os sicilianos chamam de lupara, atingiu-o no peito, e fez um buraco danado, varando tudo o que encontrou pela frente e esbagaçando um bom pedaço da espinha. Tudo se passou num átimo, mais rápido que a compreensão; o negrinho que antes avisara a presença do bandido, como um relâmpago negro, pulara lá de cima com a 12 na mão e para arrematar o serviço, já diante de nossos olhos, encostou a lupara na cabeça do desgraçado sem que tivéssemos tempo de intervir e disparou outro petardo, fazendo-a explodir, como uma melancia jogada com força ao chão; voaram miolos e fragmentos de osso para todos os lados, esparramando-se no assoalho e nas paredes. Todos que ali estavam e presenciaram a cena, ficaram como que congelados de horror, espanto e nojo. Dona Esmeraldina, olhando para o negrinho, impávida, disse: “Rosendo, estamos vingados, meu filho. Agora chama o Zé Augusto e manda ele dar um pulo até aqui prá arrastar estes restos e sumir com ele. E depois volta aqui e limpa esta sugerama toda, que esta sala tá que é um nojo só” e olhando-nos, fria: “ Me desculpem, vou fechar as portas da sala, para que os senhores não tenham que ver mais esta porcaria , mas este trem não merecia outra coisa. Jurei ele de morte, quando fez mal à minha Afonsina, uma menina inocente, criada como filha, desde o momento de parida. O menino, este Rosendo, seu irmão, mostrou que é homem; tá triste porque a menina vai para a Capital terminar os estudos. Por lá ela casa, porque lá não ser mais moça já não é tão requisitado como aqui. Minha irmã Adenaíra, se perdeu com o João Borete, conhecido como João do Boi; foi para a Capital e se casou com o Dr. Rodrigues, médico de mão cheia. O povo de lá é menos precavido”. Ouvi aquilo meio aéreo, meio abobalhado, distante. Senti-me como um sonâmbulo, de olhos abertos mas em sonho. Nunca tinha visto uma brutalidade daquelas, coisa muito feia e nojenta de se ver, tanto que me deu ânsia de vômitos. Pedi licença à dona da casa para me retirar e tomar um banho porque estava todo respingado de sangue e não sei mais o quê.

Levei semanas com aquela cena me assombrando. Acordava todo suado e via o negrinho com a 12 apontada para a minha cabeça! Que horror! Depois, a impressão foi se esmaecendo e se tornou uma simples lembrança, não me perseguia mais, nem me causava qualquer tipo de sensação; fiz até brincadeira. Alguém, tempos depois, me perguntou se ouvira dizer que o Mão Branca fora assassinado; confirmei: “morreu como um passarinho”, eu disse. “Como?”, perguntou o outro. Respondi, sério: “Morreu como um passarinho...com uma carga de chumbo aos peitos”.

Joao Milva
Enviado por Joao Milva em 28/06/2008
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