OLHOS DA NEGAÇÃO

Hoje amanheci com os olhos da negação. Não vejo mistério no cosmos, não vejo mistério na vida. Recuso o olhar incomum e a perspicácia em captar detalhes. A palavra não a quero polivalente. Que se vá a conotação e que fique a denotação. Aceito Bernardo Guimarães quando diz “profetas talhados em gesso”, disse e explicou e não estou nem ai para Manuel Bandeira com seu verso “pedra-sabão lavrada como renda”. Digo: chegou a tarde e depois dela vem a noite. Descrevo a paisagem vislumbrada da janela como um matagal que existia e atearam fogo, os grilos que lá moravam invadiram a minha casa e o meu sono que era bom acabou. E que a minha vontade é de sair por aí chutando pedras.

Pedras não chutei, mas o sair por aí aconteceu: segui o caminho do mar. Avistei-o. Atraiu-me e me fez contraditória... Foi um olhar incomum que lhe lancei. Estava ele lá, manso feito um lago, talvez com preguiça ou quem sabe feliz pelo vazio de suas praias, por não precisar do amigo vento pra dar movimento às suas águas e fazer surgir as ondas e com elas tentar expulsar de dentro de si tanta gente desconhecida e que vai chegando sem o mínimo de cerimônia, ocupa suas praias, as cobre de sujeira, espoja-se na areia e sem pedir licença joga-se com a maior intimidade por sobre suas águas, mergulhando-as e com braçadas deselegantes tenta rasgar suas entranhas.

Acomodado estava o mar, acomodado como eu, que mais pareço uma faixa de terra que vez por outra sofre abalos sísmicos para depois justapor. Anos a fio venho sofrendo dentro de mim um processo de acomodação de sentimentos com a maestria de fazer inveja à natureza. Nada destruo, embora vez por outra haja ameaça de ativa vulcanização, logo abafada pela falta de sintonia entre o sentir e o deixar fluir, não mais existe força nem motivação, a matéria em fusão natural já não produz a lava e sem lava não há erupção. Vulcão extinto é o que sou

Zélia Maria Freire
Enviado por Zélia Maria Freire em 28/06/2008
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