Manhã de sábado
MANHÃ DE SÁBADO
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 25.06.2008)
Ganchos, SC - Ganchos é uma cidade gozada. Ela fica no litoral. Em Santa Catarina, isto não é grande vantagem. Com a extensão do litoral catarinense, muitos lugares e diversas cidades situam-se à beira-mar. Apesar de todo o litoral disponível, o Estado só não tem petróleo em seu vasto mar fronteiriço. Os caprichos de uma peculiar equação usada para definir os limites das águas territoriais, em virtude de uma extravagante curvatura do território paranaense, voltando-se para o Sul logo antes de iniciarem-se as praias catarinenses, fazem com que, por uma perpendicular à tangente que passa por esse ponto de transição, reservas submarinas de óleo à frente de Itajaí e, mesmo, de Florianópolis, sejam havidas como situadas em águas territoriais do Paraná. A Geografia é assim mesmo, não se cansa de nos pregar peças.
Mas Ganchos não, Ganchos é território inegavelmente catarinense. Isso não a exime da característica de ser uma cidade gozada. Em primeiro lugar, pela singela circunstância de, oficialmente, não se chamar Ganchos (apesar de toda a História existente por detrás do nome). Nos mapas, atlas e relatórios oficiais, o município está batizado com o pomposo e adulador nome de Governador Celso Ramos. Isto, acrescente-se, num Estado que já tem outra cidade, no Planalto Serrano, chamada Celso Ramos... Ao se emancipar, tornando-se município autônomo, Ganchos foi compulsoriamente instado a homenagear um ex-governador, à época, ainda vivo. A época era o período da ditadura militar brasileira, pois. A homenagem é de tal forma marcante, e tão consolidada nas raízes culturais do município, que seus habitantes, ou as pessoas nele nascidas, são conhecidas pelo gentílico gancheiro.
Nada a estranhar, eis que Aurélio já nos ensinava, com muita propriedade, que gancheiro (subst. masc.), na Amazônia, é o "canoeiro que põe a embarcação em movimento por meio de gancho que vai prendendo em árvores, pedras, etc., das margens do rio". E Governador Celso Ramos, perdão, Ganchos é uma cidade de canoeiros, isto é, de pescadores tipicamente açorianos, da mesma estirpe daqueles que foram para Massachusetts, nos Estados Unidos da América, a fim de caçar baleias e ser glorificados por Herman Melville na clássica obra da literatura universal de título "Moby Dick". Falta-nos um Melville para exaltar os açorianos daqui, de Ganchos, Santa Catarina, que pescam tainhas e cultuam a farra do boi.
E esta é outra característica gozada do município: a prática e o uso da farra do boi, tão execrados pelo mundo civilizado, o qual prefere trucidar jovens soldados e civis inocentes ao longo do globo globalizado ao invés de brincar com touros, bois e vacas que pastam por aí.
Pois no sábado de manhã, aqui mesmo, em Ganchos, ocorreu uma hecatombe na localidade chamada Palmas, ou Palmas das Gaivotas. Na verdade, foram praticamente duas hecatombes, posto que o acontecido resultou na morte cruel de exatos 190 indivíduos que sangraram aos espasmos durante mais de meia hora cada um, sem qualquer assistência, até expirarem irreparável e definitivamente. Quando se aproximavam da orla marítima, tais indivíduos, que incluíam adultos, velhos e crianças, tanto do sexo masculino quanto do feminino, além de grávidas a ponto de parir, foram sitiados pela retaguarda por homens malvados que os impeliram, a todos, aos tormentos da morte mais vil e trágica que se possa imaginar.
Tainhas, todavia, são feitas para serem cercadas assim com as redes, trazidas à praia e deixadas ofegantes e sangrando até a morte sobre as areias claras. Ninguém reclama de saboreá-las depois desse suplício - e, assadas na brasa, elas são deliciosas, as tainhas e suas ovas.
(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Pai sem Computador", novela juvenil)