Olhos enigmáticos
Há sete anos trabalha numa escola de muros baixos e coloridos, num bairro em que os quarteirões suspiram silêncio. Não se avistam almas. Talvez por um processo estranho, a natureza conspire na solidão das ruas.
O trajeto o deixa desconsolado. O silêncio acelera o processo de monotonia e o de tristeza. Primeiro, em doses pequenas. Em seguida, em porções lancinantes.
À saída da última aula da manhã, um bilhetinho: “Estou na cidade. Quero te ver. Me liga. Tafe”.
Dos anos de faculdade, a recordação mais vibrante: Tafe. Num almoço na casa de colegas, visivelmente embriagado, ao ouvido:
- Você reúne quatro elementos difíceis de serem encontrados numa mulher: beleza, elegância e inteligência.
- Qual é o quarto? Perguntou, curiosa.
- Ser sexy o tempo inteiro.
A palidez permanente nas faces de Tafe cedeu ao sangue que lhe fluía involuntariamente. Desculpou o inconveniente pensando um deslize de quem bebera mais que o razoável.
Aos amigos, numa outra ocasião, confessara o desejo inexeqüível de vê-la de lingerie preto, espartilhos e meias transparentes que alcançassem os joelhos. Curiosos, ensaiavam descobrir o que faria com ela.
- Nada, disse ingerindo rapidamente um copo de cerveja. Ficaria sentado, olhando aquele corpinho no lingerie. A única coisa que me atrai nela são os olhos. Olhos enigmáticos. Nunca sei o que querem dizer.
- Você é louco, disse um.
- Pervertido, acrescentou a namorada de outro.
- Um simples fetiche, declarou o dono do bar.
Telefonou assim saiu da escola. Mal articulava as palavras. Extrovertida, falava ininterruptamente. Sorte dele. Almoço no dia seguinte. Poucos dias na cidade.
A esposa, a filha, o filho, a sogra e o cachorro perceberam o devaneio. Entre a esposa, a filha, o filho, a sogra e o cachorro, confiava restritamente neste. De modo que pôs a coleira, prendeu ao banco de um parque e discorreu sobre a excitação do encontro.
A esposa surpreendeu-o, gestos enfáticos, voz didática ao cão que olhava ininteligivelmente o dono. Em casa, enquanto ela questionava seu comportamento, tomou um remédio para dormir.
De tão forte, o sonífero quase o fizera perder o último toque do despertador. Fez a barba. Conferiu unhas, ouvidos e olhos. Banho. Melhor roupa. Sapatos pretos combinando com as meias pretas e o cinto preto. Quem sabe os olhos enigmáticos num lingerie no meio do restaurante?
As aulas demoraram. Ao fim delas, preparava-se para sair, uma professora quis solucionar uma dúvida de léxico, um aluno insistiu em discutir a relação entre poesia parnasiana e simbolista e a coordenadora, preocupada com as aulas de história, pediu alguma sugestão que aperfeiçoasse a didática do professor da disciplina.
Ao meio-dia e cinqüenta e cinco sentara-se no restaurante conforme o combinado e, conforme o combinado, depositou uma margarida ao lado esquerdo, abriu o guardanapo de rendas bem trabalhadas. Fingia ler um tratado de lógica.
De lógica nada entendia. As complicadas fórmulas transpunham-se em pensamentos eróticos. Os suspiros voluptuosos incomodaram os ocupantes de uma mesa. Sensíveis, trocaram de lugar ofendidos pela aparente e inconveniente excitação do cliente.
Em poucos minutos, as fórmulas matemáticas e perguntas sem nexo encetaram uma música clássica, cuja letra parecia constar do repertório de Jackson do Pandeiro. A música incipiente não progrediria.
- Oi. Demorei?
Sete anos, três filhos, falta de exercícios, cabelos revoltos... Olhos enigmáticos?
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 26 de junho de 2008.