Tarde Azul
Minha casa tinha mais som, mais cor, mais vida. O sol entrava casa adentro e chegava na sala. Os cristais de minha mãe na cristaleira refletiam o dourado que vinha do sol.
Todos tinham horários, mesmo assim sentávamos à mesa de manhã. A gente com cara de sono e vontade de continuar dormindo e meu pai e minha mãe sorrindo, dispostos, não sei que graça achavam em acordar cedo.
Mainha saía primeiro, as cartas do serviço postal eram exigentes! A gente saía em seguida com painho para o colégio. Embora ele fosse nos levar de carro sempre chegávamos atrasadas.
Meu pai também nos pegava às onze e meia, às vezes demorava e a gente ficava esperando, esperando, até que aparecia o nariz azul do carro nos fazendo correr ao encontro dele.
Decerto a casa tinha mais vida, mais luz, mais som. A gente chegava primeiro do que mainha, quando não a pegávamos no Correio e vínhamos todos juntos.
Ao entrar em casa, nossos sapatos chegavam antes de nós na sala, depois a saia plissada azul, os livros... minha irmã e eu gostávamos de ficar a vontade em casa.
A gente almoçava junto, cada um contava como tinha sido a manhã. As nossas tinham aquele quê de meninice que fazia meus pais sorrirem. Minha mãe sempre tinha alguma complicação no Correio, algum carteiro, alguma C.I para enviar para Maceió. E meu pai algum acontecido no Fórum, algum juiz “louco”, alguma “pérola da justiça”.
Processo, carta, juiz, malote, balancete e fórum povoavam as nossas conversas. Quando bem mais tarde, já me entendendo por gente, escutei de um padre uma frase que descrevia bem aquilo que acontecia: “que é na hora da refeição que Deus se senta conosco à mesa, onde o prato principal servido é a nossa vida”.
Era assim. Foi assim por muito tempo, mas muito tempo mesmo. Depois do almoço minha mãe deitava no chão e meu pai na rede, bem no meio da sala, para descansar até a hora de voltarem ao trabalho, enquanto isso, a gente brincava, como disse uma vez o Ziraldo o “tempo parecia fazer horas a mais”. Perto das duas, tomavam banho, tomavam um cafezinho e saíam. Mainha no sentindo de quem vai para Maceió e painho no sentido de quem vai à Serra da Barriga.
Nunca parei para olhar eles dormindo ali, meu pai na rede e minha mãe no chão, talvez porque achasse que eles fariam isso por toda a vida. Pensei que existisse vida sempre.
Mas o tempo foi passando, a gente crescendo, as coisas mudando. Eles se aposentaram, não existiam mais cartas com horários rígidos. Mas o fórum permaneceu, embora o escritório tivesse mudado de lugar.
Como os horários pararam de ser tão rigorosos, não precisavam acordar tão cedo, nem dormir depois do almoço. Mas continuamos a conversar sobre o nosso dia.
Agora a gente tinha mais novidade. Parece que acontecia muito mais coisas no nosso dia. Até que nossos encontros passaram a ser agendados, nos víamos nos finais de semana. A necessidade de estudar mais aprofundado nos levou para longe das conversas à mesa, do acordar cedo, de vê-los dormir depois do almoço.
Sem notar tudo foi passando, foi mudando tanto, que fazia muito tempo que eu não sabia o que era acordar uma segunda-feira em União. No meu calendário só existia sábado e domingo, quando a cidade para e você percebe então que passou.
Queria ter tido chance de mudar esse final, essa história. Mas não fui eu quem escreveu. Sou apenas personagem também.
Estou de férias. Depois de muito tempo, planejando e contando os dias para voltar para casa, voltei.
Agora é de manhã, já beira as 11:00hs. A casa está vazia, silenciosa. Do vitral da porta da frente vejo a calçada. Agora tem uma árvore que impede que o sol chegue até a sala. Não tem mais sol dentro de casa, os cristais de minha mãe não refletem o dourado vindo dele.
Na minha casa de antes não tinha árvore na calçada, não tinha muro de pedras, não tinha piso branco. Mas tinha mais luz, mais cores, mais sons. Tinha uma felicidade incutida em cada manhã que a gente acordava com sono, em cada tarde que se estendia enganando os ponteiros. Tinha meu pai.
20-06-2006