MARIA E CARMEM

Dois nomes reveladores. Mulheres que marcam a história do ocidente com traços distintos. Maria é a pureza, Carmem, o desejo. Associações primárias baseadas na religião e na arte. Maria, mãe de Jesus. Carmem, a cigana protagonista do romance de Prosper Mérimée, consagrada na ópera de Bizet. Mas existem outras Marias e Carmens tão interessantes como as imortalizadas. Mulheres símbolos de transformação e ousadia que determinam suas vidas com personalidades únicas.

No princípio, Maria era só palavras. Costuradas as mensagens e os textos, Maria era a coragem de viver e a grandeza de escrever. Tentava descobrir o perfil da mulher que, mergulhada num rio de vivências, colocou “uma rolha na lágrima” e buscou a arriscada navegação na virtualidade dos modernos oceanos. A história de Maria é densa. Na interpretação dos seus contos, é evidente a presença da autora na personagem que amadurece, da figura fictícia na mulher que sonha. Maria surge como a pluralidade de todas as mulheres, a singularidade de um eu verbalizado com originalidade.

Encontrei Maria Lindgren num Café do Leblon. Como não poderia reconhecê-la? O olhar arguto, a voz firme, um livro de contos na mão e o sorriso impregnado de primeiras alegrias. Maria era a imagem que construí com suas palavras. Conversamos durante horas. Anoiteceu com a despedida deste encontro mágico.

No dia seguinte, Maria me chamou para uma exposição. Gostaria de me apresentar Carmem, a revolucionária que fez a cabeça dos brasileiros por duas décadas nos programas de rádio, gravou centenas de músicas e ganhou o mundo nos musicais norte-americanos.

Quando entramos no salão do Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro, deparei-me com pequenos manequins vestidos com roupas extremamente coloridas, um grande telão apresentando as cenas dos musicais, fotos, textos, pequenos sapatos altíssimos, muitos penduricalhos e turbantes... A grandeza do mito estava refletida em sua representação.

Carmem Miranda, para mim, era apenas uma vaga lembrança dos musicais reproduzidos na sessão da tarde e agora, cinqüenta anos após a sua morte, estava ali, deslumbrante, misturada num público heterogêneo, equilibrada num gigantesco sapato plataforma, com todos os balangandãs e cores a que tinha direito. Carmem Miranda representava todos os sonhos de uma geração, mas também era uma mulher de origem humilde que trabalhou muito para alcançar o reconhecimento, sofreu a ausência de não ser mãe, sorriu e chorou com qualquer uma. Paradoxalmente, o sucesso foi uma das causas de sua morte prematura.

Compreendi que, naquele momento, Carmem Miranda havia saído das telas e caminhava junto aos presentes na leitura de sua história. Cantarolava a música que marcou o primeiro encontro no ouvido de um casal de idosos, sorria para os jovens virtuais, embalava uma criança sonolenta com o tilintar de suas miçangas... Os textos biográficos de Carmem, expostos nas paredes, conflitavam-se com o belo e constante sorriso retratado. A ambigüidade de estar entre a sombra no mundo e a projeção na tela.

A mulher de pequena estatura se despe das fantasias e flutua, encontra-se com a artista de projeção infinita. Carmem Miranda ganha as cores das memórias reavivadas e da surpresa das descobertas.

Maria Lindgren cantarola os sucessos da época do rádio, lembra-se da alegria de sua mãe imitando Carmem Miranda. Deixo-me levar pela fantasia. Os nomes assumem novos significados. Maria é a vida em sua plenitude, Carmem, a imortalidade.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 28/01/2006
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