A FUGA DE MEU CÃO
Chamava-se Chacrinha. Nem sei por que cargas d’água dei este nome ao cachorro. Era um cusco preto, com uma patas branca, destoado das demais, meio peludo. Tinha um olhar atilado, uma boca enorme que se mantinha presa a trapos que eu puxava, segurando-o, levantando para o ar, dentes presos, respiração ofegante, peito saltando, olhar atento ao pano pendurado, sem descuidar para não perder a presa. Estava sempre assim, ao nosso lado. Corria comigo pelas ruas, enveredava por esquinas, metia-se em becos, quintais, ladrava com altivez e fugia no momento certo. Num destes dias, em que as coisas acontecem sem que tenhamos qualquer intervenção ou pressentimento, fui à aula, pela manhã, com a pasta embaixo do braço, uniforme limpo, calças azul-marinho, frisadas, um lanche para o intervalo. Estava no horário de rotina à espera do coletivo que me levava até à escola, quando inesperadamente despontou na esquina, à toda velocidade, Chacrinha, correndo ao meu encontro, sem que eu pudesse detê-lo. O ônibus dava sinais de estacionar e eu o expulsava em absoluto desespero, que para maior desgraça, ele parecia entender ao contrário, fazendo festa, pulando em minha roupa asseada, querendo participar como sempre de minha vida. Entrei no ônibus, na esperança que ele voltasse, desaparecendo na esquina, entretido com outras mensagens que pudessem surgir no momento, talvez uma cachorrinha alegre que despertasse interesse ou o cachorro imenso do vizinho, que latia como um trovão, afugentado-o em definitivo. Nada disso aconteceu. Quando sentei-me num banco, logo após à cadeira do cobrador, ele saltou para dentro do veículo, acomodando-se exatamente embaixo, junto a meus pés. Algumas pessoas brincavam que ele deveria pagar a passagem, outros olhavam de soslaio, desconfortados com o animal, assim alojado no mesmo ambiente. O cobrador já se inquietava em seu lugar, mexendo os quadris, adequando-se para solicitar a passagem para a frente, já que se esgotava rapidamente as acomodações. Vez que outra, olhava para trás, na tentativa de enxergar o animal que aninhava-se, encolhido, sem mexer-se. Chacrinha, às vezes, observava atento, para o alto, aliviado, como se entendesse que estava no seu direito.Em seguida, baixava a cabeça, sisudo, conformado em apenas proteger-me. O cobrador, por sua vez, encarava-me com ar de censura, mas não tinha mais tempo de fazer qualquer reprimenda, porque as pessoas já se acotovelavam no corredor, centenas de meninos que iam para a escola em seus uniformes coloridos, outros tantos operários, comerciários, comerciantes, bancários, professores, enfim, o povo que se juntava na mesma hora para chegar a seus locais de trabalho. O pior de tudo é que se alguém se aproximava, o cão rosnava, com uma empáfia e coragem, como se me defendesse. Eu suava frio, imaginando que a qualquer momento, ele morderia alguém, ou mesmo que o colocariam para fora, na próxima parada. Meu tormento durou mais ou menos 40 minutos, porque naquela época, final dos 60, os meios de transporte eram lentos e deficitários. Desci um quarteirão antes da escola, aflito para me ver livre daquela inquietação. Desci contrito, coração apertado, culpado, por ter abandonado o meu cachorro, fingindo que não era meu, às pressas, quase fugindo do veículo. Mas na verdade, ele me seguiu, esgueirando-se por entre as pernas, sapatos, botas, alpargatas, torcendo o corpo lustroso e atingindo os degraus rapidamente, chegando em seguida ao meu encontro. Nada porém, me consolava. Afinal, ele estava ali e eu não poderia mandá-lo embora. Como voltaria, como encontraria rastros, cheiros, faro, se havia vindo de ônibus. Meu cão seria abandonado em plena via publica e não voltaria jamais para casa. Deixei que entrasse na escola e subi rapidamente as escadas em direção à sala de aula. Ele se perdeu de mim, mas logo encontrou diversão, correndo no pátio através dos meninos que chegavam e se permitiam na algazarra, divertindo-se, nas horas iniciais, anteriores ao toque da sineta. Chacrinha corroborava para esta festa. Eu, lá de cima, a tudo observava, triste, temendo deixá-lo sozinho e perdê-lo para sempre, principalmente porque o inspetor da escola correu-o imediatamente ao sinal da campainha. Não fiz nenhum gesto para ajudá-lo, defendê-lo, salvá-lo do desconhecido, das ruas estranhas onde não deixara faro, das diversidades, dos automóveis, dos homens que talvez o chutassem, correndo-o de suas casas ou dos outros cães, maiores e mais ardilosos, capazes de enxotá-lo de seus reservados. Com este sentimento entrei na sala de aula. Não me concentrava em nenhum assunto, nenhuma conversa entre os colegas ou qualquer ensinamento dos professores. Só via a imagem de Chacrinha, perdido nas ruas da cidade. Voltei para casa, taciturno, com a pasta em desalinho, tal como meus pensamentos. Papeis se juntavam amarfanhados a cadernos dobrados, lápis misturados a canetas, borrachas e transferidores. A desorganização imperava. Meus pensamentos divagavam e as ruas me pareciam extensas demais e o caminho extremamente longo e o tempo quase eterno. Da esquina, avistei minha casa. Tudo parecia em ordem. As árvores não se mexiam, pelo contrário, desenhavam tacitamente sombras na calçada, elaborando uma tarde que se aproximava devagarinho, provavelmente vistosa, num dia de primavera. Minha alma, entretanto, o inverno enregelava os sentimentos. Tirei a chave do bolso, na tentativa de abrir o portão de ferro, esperando que as expressões tristes da família. Mas, eis que um som surdo e abafado, como se um corpo se debatesse me despertou a atenção. Por um momento, pensei que estivesse sonhando e que meu cachorro houvesse voltado para casa. Quando abri, a certeza se solidificou. Ali estava ele, feliz, lambendo-me as mãos, batendo as patas em minha pasta, sujando minha roupa. Havia voltado, nem sei como. Minha mãe dissera, que por volta das dez horas ele aparecera, esbaforido, língua pra fora, extenuado. Então se confirmara que ele não voltara de ônibus.