O Louco

O LOUCO

Aquelequefalacomigo disse: “Vai, pula!”.

Respondi: “Pular? Não pulo, não sou louco”.

Então ele disse: “Então voa!” .

Respondi: “Voar eu vôo. Você vai ver!”

Estou à beira de um abismo. Literalmente, podes crer. Não para despencar, como temo – mas para voar. Sinto o ar nas minhas asas. É real esta sensação?

Voarei.

Não sou pássaro; mas o são, os peixes voadores?

Sempre imagino o deslumbre desses peixes desajeitados quando, emergindo da escuridão das águas, alçam-se aos ares, ainda que a baixa altura! Vislumbram o esplendor dos céus, por um ínfimo momento, como vislumbramos, em efêmeras visões, outras dimensões! Diante dos horizontes que se estendem diante de nós, ainda que por um ínfimo momento, como nos parece – a nós e a estes peixes quase alados - tenebroso e escuro o nosso mundo!

Que sentido tem esta imagem delirante que me ocorre antes de alçar vôo? Não será apenas uma fantasia para disfarçar o pavor? Pois o que fazem os peixes voadores? Seus vôos não serão apenas saltos desesperados para fugir dos predadores que, bocarras arreganhadas, se lançam famintos sobre eles?

Quais são os meus predadores?

Não sei, eu os sinto apenas.Fujo desesperado, como toda a presa, daqueles que me perseguem o tempo todo. Quem são estes que me acuam?

Conseguirão me perseguir em pleno vôo?

O que pensava ser a realidade transformou-se numa lembrança; e o que me parece a realidade é a penas a concretização de um sonho.

Abro minhas asas magníficas! Como são belas à luz do sol!

“Asas?”, perguntou-me alguém, certa vez. Eu as vejo e sinto e é isto que importa.

Aqui, no alto da montanha, estou no fundo do vale. E no fundo do vale, no alto da montanha.

Vertigem. Como é difícil voar! Como descrever as alturas?

Sonho acordado.Ou estou me transportando?

Estou no alto e estou no fundo, sou o alto e sou o fundo, mas na verdade não estou nem sou em lugar nenhum. Sou seres. Virtualmente tudo e nada. Sinto-me energia; a carne, os músculos, os ossos são apenas sensações. Este é o mistério. Identifico - me com a energia, como provavelmente a água-viva se identifica com o mar. Não é ela translúcida?

Dois são os princípios:

“Na natureza nada se cria nada se perde, tudo se transforma”. Este é o primeiro.

E=MC². Este é o segundo.

O resto é contingência e conseqüência.

Não morri nem estou sonhando um sonho dentro do sonho; continuo vivo de carne e osso. Sinto-me vivo ao beliscar a minha própria carne. Vivo!

E, no entanto, não sou mais que uma soma de partículas que se transformam em onda e vice-versa e versa-vice.

O caleidoscópio revela imagens que vão se formando à medida que o movo. Os cristais se reorganizam e oferecem uma nova percepção. Mas os cacos não se juntam. Porquê?

Navego de uma realidade para outra. Ou será de uma ilusão para outra?

O que é o real? Já não ouso responder.Miragem.

Dividido-me entre a realidade-ilusão antiga e a ilusão-realidade nova.

Isto aconteceu. Simplesmente aconteceu. “Descompensou”, dizem. Ora, ora. Não sabem de nada. “Descompensar”: que bobagem! Estou funcionando perfeitamente.Um avião descompensa por que superou a velocidade do som?

Ele me apareceu de repente, envolto em luz. Delírio? Quem é ele? Tão concreto e tão volátil! Um que se desdobra em dois, dois que se desdobram em três e se aglutinam em um.

Antes havia a instabilidade na estabilidade, agora há a estabilidade na instabilidade.

Não sei se serei capaz de definir em palavras toda esta mudança. Vivo algo novo, inusitado. O pássaro poderia descrever a fala? E a fala, o canto dos pássaros?

Tremo, meus nervos tremem e meus dentes batem.

Há divisão e há coesão. Lucidez e confusão.

Vejam a caravana!

Passo. E os cães ladram. Mas apenas ladram.

A divisão que ora vivo não é a que sempre existe entre a inteligência e o coração; não, não é isso. Quem não enfrentou este dilema dezenas de vezes ao longo da vida? No amor o enfrentamos a cada instante.

O que acontece comigo nesta hora de solidão extrema é muito mais do que uma divisão. É uma cisão completa, meu ser se divide em dois; às vezes em três, quatro, cinco.

Parece o mercúrio, quando derramado.

Estou lá, cá e acolá. Talvez na dimensão em que me encontro não haja nem perto nem longe. Talvez tudo esteja aqui e o aqui seja tudo.

Todos somos como anjos, os que alçam e os decaídos.Há os que sobem e os que descem. O que está em cima é igual ao que está embaixo. Esta a chave dos mistérios. E de todas as ilações possíveis.

Sinto a força dos anjos nos chutes que dão em minha cabeça dolorida.

Bluft, bluft.Ai!

Falam comigo, gritam comigo.Quem? Todos, ninguém. Mudam de forma diante de meus olhos, embolam, desembolam, chegam, partem...quem são?

Arrepio-me de pavor. O pavor das sombras que se movem. Estão carregadas de tristeza e de mistérios. Choro.

Um anjo se corporifica. Chamo-o de “Quemfalacomigo”. Às vezes me aparece em luz; às vezes me fala das trevas. Às vezes ri; às vezes chora.

Tento acorrentá-lo. Ele tem que ser meu prisioneiro, não eu prisioneiro dele. Mas não consigo.Disponho apenas de uma corrente; ele, da magia.Vive num universo que desconheço completamente; só agora tenho um pequeno vislumbre. Tal o peixe voador, em sua ilusão. Sente-se num vôo altíssimo quando abre suas asas-barbatana desajeitadas; mas, para os grandes pássaros marinhos, é ridículo.Pois na verdade o pobre não voa, plaina. Uns poucos metros, apenas. Mas para ele é um imenso mundo que se descortina.

É uma situação esdrúxula. E ambígua.

Porque num dado momento as criaturas que me perseguem voltam ao passado, e eu vou para o passado com elas e então o passado se desnuda diante dos meus olhos; e depois partem para o futuro, e as acompanho nesta viagem à frente e vejo o futuro. Que horror! Não existe!Para meu alívio, de repente, as criaturas desaparecem. E com elas estas imagens terríveis. Faço um esforço para esquecer o que vi. Com o passado consigo conviver, a duras penas, porque remoer o passado é sofrer duas vezes, como dizem, mas é difícil esquecê-lo, se a ele volto constantemente.

A presença de Margarida se faz sentir o tempo todo. É um sofrimento terrível, nada posso fazer para resgatá-la, só olhar, não tenho como interferir.Choro de saudades. E, no entanto, uma daquelas figuras estranhas, Aquelequenãoquerver, bloqueia, com sua capa negra todo um período, e quando insisto, ele diz: ”Não, daqui para trás são os pesadelos”. E respondo: “Mas já não vivo nos pesadelos?” “Não”, ele responde, “até agora são apenas sonhos”.

Tremo de medo. Tenho pesadelos apavorantes e às vezes me perseguem mesmo quando em vigília.

Bem pior é o futuro, vejo tão pouco! Tudo está envolto em neblina. O futuro é como uma onda enorme, uma onda gigante, e ela vem correndo lá de longe, crescendo, crescendo.De repente passa por nós. Fim. Ouço o seu rugido que se aproxima.

Volto ao velho mundo em que sempre vivi. Mas por muito pouco tempo. É como se me fosse permitido – para não morrer - voltar ao meu planeta e respirar o ar de outrora, o velho e bom ar de antigamente. Mas pouco depois, logo sou alçado às alturas de um novo planeta por um chute vigoroso e o jogo continua. O salto no abismo me libertará disto tudo? Espatifar-me-ei lá embaixo, ou minhas asas me sustentarão?

O fim pode ser o início?

Aquelequefalacomigo é impiedoso: ele espicaça, não se satisfaz, duvida, blasfema, argüi, convoca. Realiza-se ao trazer das sombras Aquelequenãoquerver e Aquelequeprecisaver.

Deleita-se com o bate boca. Realiza-se na tensão.

Para fugir, mudo de estado a todo instante. Às vezes me custa voltar; perco-me do corpo.

Deliro, vagueio, vôo.

Vôo.

Não agüento a discussão sem fim.

Não leva a nada e eles dizem coisas terríveis um ao outro. Arrepio-me diante das acusações.

O indivíduo que sofre, como é o meu caso, de um sofrimento sem cura, ou de um vôo sem volta – porque me perdi e não me encontro - pode resolver esta questão simplesmente pulando no abismo.

Por isto aqui estou.

Plaft!

Resta enterrar os nojentos despojos. Se forem encontrados.

Morrendo, através de um ato voluntarista e de grande discernimento, não só deixaria de atormentar-me, mas melhor ainda, de atormentar os outros, porque o meu estado – percebo claramente – incomoda. Contamina, transforma águas claras em turvas.

Sou como uma lema que morreu na tua cama.

Cuidado, que alguém pode aparecer e dizer: Coma!

Isto me faz lembrar aquele louco manso: servia de ajudante do psiquiatra de um hospital.Certo dia os dois entraram na cela de um louco varrido, destes que passam dias em estado catatônico e têm que dormir nus numa folha de jornal, porque tudo o que tiverem ao alcance das mãos serve aos seus objetivos suicidas. Neste dia, o louco estava atacado e tinha comido os próprios escrementos.O psiquiatra permitiu-se uma emoção e disse para o seu ajudante louco manso: “viu até onde pode chegar o ser humano, comer isso!?”. O louco manso respondeu: “Ora doutor, comer o que é seu não é nada, eu queria ver ele comer os dos outros!”.

A lógica dos loucos. Impessoal. Indiferente. Para dobrar a renda per capita basta matar a metade do número de habitantes. A forma perfeita.

Sinto que as pessoas me evitam e me olham com um olhar estranho.

Coloco problemas que elas não sabem resolver. Vêem-me como um leproso.

Plaft!

Lá se foi o problema! Tudo acabou.

Fim.

Que bom!

O mundo continuaria exatamente o mesmo. Tal e qual. Igual.

Plaft!Plaft!

O tombo ecoa, pelo mundo, pelo universo.

E como o suicídio seria um ato de vontade, absolutamente solitário e de plena responsabilidade, ninguém se sentiria culpado. Alívio geral. Talvez até alguns mais próximos se sentissem culpados; sempre existe um pretexto para essa praga incômoda da alma, mas nada que uma boa terapia não abrande.

Acontece que vivo só. Dói.

E atormentado por Aquelequenãoquerver. Acompanho o seu penar: Sonho com ele: caminha pelas vielas, noite adentro, carregando um grande saco nas costas. O que carrega naquele saco? Não sei; acordo suando, coração aos pulos, atordoado. Choro desesperadamente. Aquelequeprecisaver me sacode o tempo todo.

Todos meus laços foram desfeitos. Não tenho ninguém no mundo. Para onde foram todos? Minha sensação não é a de que partiram. Não. Não partiram. Eu é que parti para um outro sentir-ver. Não foi por vontade própria. Aconteceu. Isto é tão imprevisível! Aconteceu. Como um derrame cerebral. Agora estou bem. Dentro de um minuto posso estar todo torto. Ou morto.

Uma tormenta se abateu na minha praia. Hoje navego à deriva no Oceano. Que solidão sem fim! Às vezes vem uma onda enorme e lava o meu barco de um lado a outro; faz água, mas consigo que não seja tragado para as profundezas e o mantenho a duras penas na superfície. Mas a que custo! O esforço é tão grande e tantas horas levo no combate contra os ventos e as ondas, que em certos momentos rezo para que tudo termine.

Como me parecem calmas as profundezas!

O peixe voador anseia pelo céu, eu anseio pelas profundezas. Viver com as lulas gigantes e os cachalotes. Desvendar a mais absoluta escuridão!

O suicídio. Alívio maior que qualquer alívio concebível.Pois o alívio pressupõe o fim da dor, mas o alívio através da morte pressupõe o fim de tudo. De tudo! Que bom!

Plaft! Lá se foi!

Mas acontece que esta questão não é tão simples.

Não é tão simples. Nada simples.

Desejamos a morte. Consciente ou inconscientemente. A vida com o sinal contrário.

Não havia loucura nos habitantes do Paraíso. Nem culpas. Nem Aquelequenãoquerver e Aquelequeprecisaver. Serão Aquele ou Aquilo? Não sei bem quem são, seres ou sombras ou um sentimento negro. Mas me abismam.

Não quero saber. Sou prisioneiro, mas um prisioneiro em fuga.

Trafego de um lado para outro numa teia. Quem teceu a teia que me aprisiona? Eu.

Sou como o universo: uma ordem no caos.

Se não houvesse esta ordem, onde eu estaria?

Imerso no caos.

Agora descobri o caos na ordem. Há um caos instalado e esta descoberta é que me colocou no estado em que me encontro. Estupefato com o que vejo e sinto.

Em verdade vos digo: o louco não vive numa ilusão maior do que os chamados normais, pois não existe – por definição – ilusão maior ou ilusão menor, apenas ilusão; os loucos vivem numa ilusão diversa, apenas isso, e quiçá mais próximos da realidade, quem sabe? Só que cada um entende como realidade a ilusão em que vive.Cada um no seu sonho.

Outro dia disse à lembrança de Margarida: “Sinto a tua falta. Porque me deixastes? Onde moras? Onde estás? Preciso de ti”.

Margarida nada disse. Olhou-me com um olhar triste e cheio de piedade. Um olhar que confirma o Mistério que a cerca e a lembrança se desvaneceu.

Um vento frio soprou sob a porta. Meus pés ficaram gelados.

Margarida e eu éramos como o pólo positivo e negativo da corrente elétrica.Podes por a mão no fio; se os dois não se juntarem, não sentirás nada. Onde está a corrente?

Um não manifesta nada sem o outro, mas a corrente está ali.

Há que juntar os fios, para que exibam a sua existência e a sua força.

Sem Margarida não sou nada.

Ontem olhava para as estrelas com o olhar dos inocentes. Fiquei maravilhado! Disse para Margarida, que de novo veio-me à lembrança: “por mais que tentemos jamais teremos acesso a tal grandeza”.

De vez em quando Margarida aflora dos recônditos de minha memória e se posta, sorridente, diante de mim. Lembro-me dos tempos em que ela passeava comigo de mãos dadas na beira do mar. Sentados na areia e em silêncio, apreciávamos o movimento das ondas. Pouco a pouco percebíamos que havia uma sincronicidade entre a batida das ondas beijando a praia e a batida dos nossos corações – era o momento em que nos conectavamos com o grande movimento que rege o universo. E percebíamos como nossos os movimentos das asas das aves marinhas que, da costa às ilhas, sobrevoavam, no entardecer, o oceano.

Nos sentíamos como parte daquele grande espetáculo, e navegávamos em sintonia e extasiados permanecíamos até o anoitecer à mercê daquele ir e vir que nos embalava em seus braços, como se fossemos duas crianças.

E quando fazíamos amor na areia sob o céu estrelado sorrindo sobre nossas cabeças, sentíamos a grande onda atravessando os nossos corpos em velocidade crescente e a partir de um determinado momento não era mais o universo que determinava os nossos movimentos, mas nós, que num gozo furioso, determinávamos o movimento do universo.

Outro dia fui nadar. Quando dei por mim estava sendo arrastado por uma corrente. Ao meu lado, como se fosse a minha sombra, nadava, calmamente, uma mulher negra e linda. Quem era? Nunca a tinha visto. Mas sabia que ela sempre estivera ao meu lado e que se chamava a Desconhecida.

Percebi como é irresistível a força da corrente. Não procurei voltar, me deixei levar, superei o instinto que nos contrapõe àquilo que nos arrasta. Sentia as águas passando pelas minhas pernas. Cheguei a uma ilha. Estava cansado e com frio. Encostei-me numa laje e ali fiquei, pensando: “este é um bom lugar para se ficar. Longe de todos e perto do mar. Vou ficar aqui”. Senti então a presença d’Aquelequefalacomigo.

Fechei os olhos, ouvia a dança dos mundos rolando nos braços de Deus.

Foi um momento – apenas um momento, que pena!– em que me identifiquei totalmente com as grandes energias que percorrem as águas. Aquelequefalacomigo rosnava, como um cão ameaçador, e eu podia ver os seus dentes à mostra. Mantive-me quieto, como se nada visse.Mas ele rosnou ainda mais.Então eu disse: “O que queres? Me deixa em paz! Estou cansado, principalmente de você. Me deixa em paz. Quero ouvir apenas as águas, me misturar com elas”. E fechei os olhos.

Dois dias depois me encontraram sentado na pedra, alheio a tudo. Eu simplesmente seguia os movimentos da dança de Deus. Descobri que o ritmo de sua dança é ternário, que de seus movimentos emanam a vida e a morte, e que sua dança liberta as nossas almas das ilusões.

Ao meu lado, fruindo de tudo, a Desconhecida.

Mantenho silêncio quanto às minhas sensações e experiências.

Não tenho interlocutores. As pessoas estão mais preocupadas com outras coisas, com a política, com as bolsas, com variações de cotação do ouro e das moedas, com seus amores e seus prazeres e alguns até com a sua salvação eterna. Então é um despropósito abordar as minhas sensações e meus dilemas. Às vezes consigo manter um bom diálogo com Aquelequefalacomigo. Nem sempre é feroz, aliás, sua ferocidade maior é a sua ambição e sua inquietação; muitas vezes o surpreendo debruçado em seus problemas matemáticos, suas equações. Acredito que é por aí que ele pretende descobrir os grandes segredos, os grandes mistérios, a solução dos paradoxos. Quando o vejo assim, obcecado, movo a cabeça, penalizado. Uma vez ele comentou comigo: “Nos perdemos por causa do paradigma”. Fingi que entendi. Só bem mais tarde deduzi o que ele quis dizer. Mas de um modo geral, ele me acua. Tornou-se destrutivo. O pior é que tenho que disfarçar o tempo todo a pressão que sofro. Quando chego ao limite, dizem que me “descompensei”, me internam por uns tempos, me enchem de remédios, me submetem a uma análise. Faço o possível para me colocar no nível deles e parecer o que chamam de “compensado”. Na verdade tenho gana de me livrar daquilo tudo e daquela gente. Tenho pena deles, porque não sabem o que acontece. Aquele quenãoquerver, num canto do quarto, sorri.

Gosto do azul, independentemente das associações que se possa fazer com a cor. O céu. O espírito. O mar nos dias claros. Gosto do azul porque é diferente do amarelo, mas não é que eu não goste do amarelo.Ele combina bem com o azul.Olhe para os quadros de Van Gogh.Gosto do azul como gosto de doce. Mas às vezes o azul me cansa, como nos enojam os doces em demasia e enfastiam os dias claros sem um dia escuro de permeio.Então passo a preferir o vermelho, e depois também me canso, e quero o verde, o roxo e o negro. Desconfio que as cores refletem a minha disposição e o cristal através do qual vejo o mundo. Mas como entre os estados de espírito sempre prevalece um, gosto mais do azul, entre todas as cores. Aquelequefalacomigo gosta do vermelho, Aquelequeprecisaver, do preto, Aquelequenãoquerver, do branco. A Desconhecida, pelo que percebo, não se importa com as cores.

Os olhos da Margarida dependendo dos dias e da claridade ora estão azuis, ora verdes, ora cinzas. Outro dia, quando me lembrei dela, seus olhos estavam negros.

Já me perguntei porque Margarida me deixou. Não sei, não faço a menor idéia. Não tenho uma resposta plausível. Fico com a explicação do poeta Manuel Bandeira, que diz em certo verso: “Então veio o destino e fez de mim o que quis”. É o destino, esta força misteriosa que traça o caminho enquanto o abrimos cheios de ilusão, crentes que a linha desenvolvida em nossa mente é criação nossa, enquanto Deus, maliciosamente sorri, pois tudo faz parte de seus planos, por mais estranhos e terríveis que nos possam parecer.

Sei apenas do meu sofrimento ao perder a Margarida. O que aconteceu, meu deus?

Conheci um rapaz que vivia na mais absurda solidão. A família, abastada, o considerava louco, porque não só abraçara a solidão como a uma irmã querida, mas também a pobreza, que era extrema. Mandaram médicos e psiquiatras e psicanalistas e padres para avaliá-lo. Havia várias opiniões, mas ninguém chegava a conclusão nenhuma, por que ele não parecia agitado, nem triste, nem angustiado, nem saudoso de coisa alguma; vivia na dele, como hoje se diz , com grande precisão aliás – em paz consigo mesmo. Não se conformavam. Eu o visitava de vez em quando. Levava os jornais atrasados, geralmente com atraso de um mês. Vivia alienado do presente, vivia naquele descompasso. Algo o afastara de todos e principalmente da noção do tempo. Na verdade descobri que o invejava. E todos os que o cercavam e se preocupavam tanto descobriram que o invejavam também. Adotou, sem o saber, uma vida franciscana. Jogou fora a carteira de identidade, o CPF, os cartões de crédito. Deixou de existir. Estava livre.

Outro dia tive um sonho: Margarida se debatia nas sombras de uma casa e corria aos prantos de um cômodo ao outro. Eu agarrava uma boneca que chorava e a acolhia em meus braços. O pranto de Margarida era um lamento tenebroso. O clima do sonho era terrível e eu me enchia de pavor e de horror. Acordei suando e chorando. Não há palavras que possam traduzir a minha dor, não posso definir o que se passava em mim.

Não foi a primeira vez que tive um sonho assim.

Rezei por Margarida. Mas estranhamente, como se o céu fosse um grande espelho, as minhas orações ricochetearam no infinito azul e caíram, como uma tempestade, sobre mim. Isto aumentou o meu desespero, pois foi como se o céu recusasse as minhas palavras e meu sentimento.

Por que acontecera aquilo? Gostaria tanto de revê-la! Para onde foi?

Aquelequefalacomigo me disse que ela foi para bem longe.

Sempre lhe pergunto: “Para onde, para onde?”. “Não sei”, me responde com um ar estranho. Aquelequenãoquerver sempre barra a nossa conversa. E começam a discutir.

Aquelequenãoquerver a procura o tempo todo. Não sei qual a sua intenção. Não é das melhores, eu sei. Tenho a impressão que ele quer eliminá-la da minha lembrança. Mas porquê?

Há momentos que, apesar de minha confusão, percebo que Aquelequenãoquerver e Aquelequeprecisaver são uma única e mesma pessoa, que se apresenta de modos diferentes. São representações d’Aquelequefalacomigo.

Quais as intenções d’Aquelequefalacomigo?

Vivo em dois planos tão diferentes!

Um é escuridão; outro é luz.

Um diz: pula; outro diz: voa!

A diferença é tão grande!

Um dia, à tarde, eu caminhava numa trilha, lá em Alta Floresta.

Não me perguntem como me transportei para tão longe do mar. Tenho a impressão que às vezes nos transportamos para os lugares cujos nomes nos soam bem. Alta Floresta sempre me pareceu um nome lindo.

Se mergulharmos num sonho de todo o coração, se fizermos isto com todas as nossas forças, se nos dermos inteiramente a este sonho, acredito que nos transportamos. Simplesmente esquecemos o que nos rodeia e nos circunscrevemos ao ponto onde amarramos o nosso coração. É, acho que é isto. E como sempre sonhei em conhecer Alta Floresta caminhava por ali.

Queria estar bem longe. Ao meu lado, a Desconhecida.

Quem sabe estando eu tão longe do mar as criaturas que me perseguem não se perderiam? Na floresta densa não há referencias, quem não a conhece anda em círculos.

Fica muito claro para mim que Margarida, quando meu desespero chega ao auge, responde ao apelo do meu coração. Creio que ela se comove. Sempre que a chamo, com a alma inteira, ela me aparece, e apesar de minhas saudades, quantas vezes acalentou, com sua simples presença, as minhas noites, e com um leve sorriso e um sopro – como quem apaga uma vela no quarto de uma criança – afastou de mim os mais terríveis pesadelos. Estes são os momentos em que me transformo num anjo.

Caminhava pela trilha, como dizia, inteiramente absorto, quando me deparei com Aquelequefalacomigoaquelequenãoquerver. Foi a primeira vez que vi os dois amalgamados numa só pessoa unidos n’Aquelequefalacomigo. Uma estranha criatura: quatro braços, quatro pernas, um só tronco, uma imensa cobeça. Agora sim, abandonou os seus disfarces, as suas imagens contraditórias e se apresenta como realmente é: um ser primevo, soturno, com um olhar de louco, acorrentado nas teias nas quais levianamente se amarrou e cujos nós não consegue desfazer, consciente das causas de seu sofrimento e do seu destino, a danação em vida.

Senti medo. Imediatamente no horizonte formaram-se umas nuvens negras. Era o peso de uma tempestade que caminhava em minha direção. Um vento forte e apavorante – até aquele momento sempre respeitei o vento, mas nunca me apavorei diante dele – clamava alguma coisa que eu não conseguia entender, mas temia.

Aquelequefalacomigo me acompanhou em silêncio, caminhamos e caminhamos. Não nos dirigíamos um ao outro. Ao seu lado a Desconhecida. De repente, ele me disse:

“Sabe porque estou aqui?”

“Não”, respondi.

“Porque já está em tempo de você saber a verdade sobre a Margarida”.

Algo em minha alma tremeu: “O que foi o que ela fez? Não, não diga, não quero saber”.

Minha inquietação cresceu. “Não quero saber”.

“Ela não fez nada, quem fez foi você”.

“Eu? Não fiz nada, não fiz nada!”.

Comecei a tremer: “Você não presta, você só me traz problemas, você não tem piedade, nem compreensão. Volta para o teu lugar, demônio! Você quer me destruir, quer que eu pule no abismo e não voe”.

Aquelequefalacomigo ficou impassível: “Você não conseguirá voar carregando este peso. Ele te arrastará para abismo abaixo. Teu vôo será um fracasso completo e você se espatifará lá embaixo; é isto que você quer? Morrerás e tua alma, se existe, não terá descanso”.

“Mas o que foi que eu fiz, meu Deus? Tenho a consciência tranqüila.

“Está na hora de você saber a verdade. Você precisa assumir o que fez, senão nunca sairá desse inferno em que se meteu: você matou a Margarida.”

“Como?”

“Você matou a Margarida”.

Pensei: “Este cara é louco, não posso confiar nele”. Uma pedra de toneladas foi colocada sobre o meu peito por uma mão gigantesca. Não conseguia respirar.

Matar a Margarida! Isto nunca passou por minha cabeça. Que loucura.Que infâmia!

“Margarida!”, clamei.

Ao meu chamado, ela veio de novo, lá dos recônditos da lembrança. Estava ali diante de mim. Seus olhos, cheios de lágrimas, não me olhavam de frente. “O que você fez?”, perguntei. “Eu não te traí, meu amor. Eu me entregava por dinheiro, precisávamos comer”. “Mas eu não te dava dinheiro?” “Não, você tomava o meu dinheiro. Me obrigava a sair com os homens e tomava o meu dinheiro”. “Não! Não, eu não fazia isto, não, não”. “Você era o meu cafetão. Eu me prostituí por amor a você. Se eu não fizesse você me batia. Se não entregasse dinheiro, passávamos fome”. “É mentira, é mentira, você é que era uma puta sem vergonha”. “Você pensa que eu não me lembro, só porque sou louco, sua puta sem vergonha! Pensa que não me lembro, sua puta, sua cachorra, sua filha da puta! Eu me lembro muito bem o que sofri em suas mãos, eu me lembro! Ah se me lembro!...ah que prazer em enfiar aquele punhal na tua barriga, doeu, não foi?...os gritos, os gemidos.. ah! sua cadela...que prazer você me deu! Vi você morrer como uma porca, sangrando”...

“Você apunhalou a criança que eu levava na barriga!”

“Não!...não é verdade! Não é verdade!”...

“É verdade sim, você não só me assassinou, assassinou teu filho!”

Aquelequefalacomigo disse: “Agora pula.”

A Desconhecida, com um sorriso, me tocou com a leveza de uma flor.

O dia virou noite e no céu não havia nenhuma estrela.

Joao Milva
Enviado por Joao Milva em 25/06/2008
Reeditado em 27/06/2008
Código do texto: T1051140