Um novo endereço

No sofá estampado, flores guardam resquícios da elegância de outrora.

A composição da sala reflete o zelo do antigo inquilino. Não o conheci nem de nome, nem de costumes. Nenhum dos vizinhos emitiu qualquer parecer sobre o ex-morador do apartamento que agora ocupo. Pelo visto uma pessoa reservada e de poucos amigos.

É no mínimo estranho imaginar que ele passou por aqui, mesmo que em doces deleites. O mais maluco é que nem sei se era homem ou mulher, pior: jovem ou idoso. Tudo é possível. Não existe nenhuma pista a esse respeito. Por mais que eu tente encontrar uma dica, a luta me parece inglória. Minha primeira tentativa foi escarafunchar o chão à procura de um fio de cabelo, caso encontrasse e, dependendo do tamanho e da coloração, eu poderia tirar algumas conclusões. Não foi possível. Descobri que era alguém bastante cuidadoso, o piso estava impecável. Minha segunda tentativa foi com o espelho que fica na parede da entrada do quarto. Percebi que é de cristal, devido à nitidez com que reflete minha imagem. Não é grande. Não dá para ver o meu corpo de uma só vez. Nem é novo. Algumas marcas me levam a acreditar que já está ali por algumas décadas. A parede que fica do lado oposto não oferece nenhum atrativo, não abriga qualquer objeto de arte. No espaço entre eles está a cama. Que, por sinal, é enorme. Nada disto, no entanto, me dá sequer uma palavra-chave que possibilite a solução do enigma. O local foi alugado com as mobilhas feitas sob medida. Não houve oportunidade de que eu o ocupasse sem os referidos móveis. Era pegar ou largar.

Cada dia que passo nesse Cavernoso, mais me intrigo com os fatos. A curiosidade é instigante. É inconcebível para minha inteligência tupiniquim imaginar que naqueles cômodos, pessoas choraram e fizeram amor, sem se preocuparem com a minha existência. Detalhes como este tornam o ambiente ora divertido, ora contundente, em virtude dos mistérios ali guardados. Vários “amigos” ainda tocam o interfone a procura do “velho” inquilino. É verdade que estas buscas estão diminuindo com o passar dos dias. As coisas vão se acomodando, a novidade da minha fala já não causa tanto espanto. Muitos dizem apenas “obrigado”. Outros ao ouvirem minha voz, desligam com rapidez e o mistério, continua.

Ah, o que seria da vida se não existissem os mistérios! Todas essas coisas são como o choro de uma criança nascendo prematuramente. Todos esses segredos são testemunhos eloquentes de que viver e morrer é o mesmo que mudar e não deixar o novo endereço.

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 24/06/2008
Reeditado em 04/10/2017
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