PROFESSORA CLARA

Às vezes a gente se pega a imaginar coisas, entre elas, por onde, ou como terminou a vida de determinadas pessoas. A professora Clara é uma. Sei que o leitor já está curioso a respeito da personagem. Vou apresentá-la. Mas como convém, devo fazer um pouco de bico-doce. Deixar você com a pulga atrás da orelha. Ou, melhor ainda, com as orelhas em pé. Na verdade, tenho que embromar você, ou como se diz na gíria, dar um desdobro.

A professora Clara... Não, ainda não é assim. Eu estudava o terceiro ano primário, completaria nove anos de idade durante as férias, no meio do ano. Um horror fazer aniversário assim. Perdemos festas e presentes.

Já nasci gostando dos livros e nem precisei dessas campanhas atordoadas de hoje em favor da leitura e da escrita. Foi letra, não fazia diferença, podia ser no papel, no quadro-negro/verde/branco, na parede, nos letreiros de cinemas, ali estava eu de olhos fixos. Achava as letras mais bonitas do que os artistas. A professora Clara era uma atração especial para mim, pois era uma atriz que entendia das letras.

Baixinha, fortinha, pernas grossas, um pouco barrigudinha, cabelos agastados e curtos, pele morena, mãos gordinhas e pequenas. Vestia sempre uma roupa que penso ter adotado como uniforme. Era uma saia justa cáqui e uma blusa branca, esportiva, em cambraia de linho. Usava um batom quase vermelho. Parece que passava o batom levemente porque tinha algumas falhas e os lábios ficavam com espaços menos intensos. Tinha uns dentes interessantes, meio separados e um pouco grandes, meio empinadinhos também. Tinha um busto volumoso e largo de leste a oeste, terminando quase no cós da saia cáqui. Mas era interessante.

A professora Clara tinha a voz igual ao nome e a pronúncia era coisa de locutor dos bons, potente, muito potente, vibrante, marcante. Muitos adjetivos? Você acha? Ainda são poucos para a professora. O Aurélio só de adjetivos seria insuficiente para descrever a mestra querida.

Eu ficava no banquinho encantada, fascinada, imaginando que um dia iria amar ser igual a ela. Já me aposentei e não cheguei perto. Ali era única, feita sob encomenda, e perdido o molde.

O livro de leitura era grosso e só tinha uma gravura de cem em cem páginas. Tinha horário de caligrafia e a professora não admitia que se apagasse coisa alguma, execrava rasuras. No horário de leitura, primeiro era a silenciosa. A professora Clara parece que era vidente, sabia quando a gente não estava lendo. Caía em cima: “Leia você, Fulano, em voz alta!” Titubeou, anotação direta no diário impecável e comunicado aos pais. Não pense mal, não era malvada. Era só ciente, consciente e exigente.

O ditado era de lascar, mas eu só tirava, de nota baixa, 9. Mais ou menos, 9,5. Na maioria das vezes, 10. Tudo verdade. E sabe como era o ditado? Assim: estudem para o ditado. Qual a lição? Qualquer uma do livro, passada ou vindoura. Sabe por quê?

Porque ninguém faria cola do livro todo.

O dia do ditado era o dia do terror de muitos e do sonho de raros. A professora Clara começava. Parece que naqueles dias de ditado ela vinha mais caprichada no uniforme e no batom.

_Papel e lápis sobre a carteira, todos.

O maior respeito. Quem ousaria perguntar se poderia usar borracha? Jamais qualquer um pensasse em usar borracha ou raspadeira, como chamávamos naqueles tempos, e perguntar seria o pior.

_Vou começar o ditado, atenção.

Tudo era maior naquele dia, o silêncio, a sala e até a baixinha professora.

_O GALO CANTA NA CAMPINA TODAS AS MADRUGADAS PARA ACORDAR A NATUREZA ENQUANTO O SOL ESQUENTA A TERRA.

_O galo o quê?

Pense na cara da professora Clara, a de um capitão da ditadura militar perderia.

_Já expliquei anteriormente a vocês que não repetirei frase alguma e nem ditarei palavras soltas. Fiquem em silêncio escutando, memorizem e anotem.

_AS FLORES SE ABREM, AS BORBOLETAS COLORIDAS VOAM EM VÁRIAS DIREÇÕES, TUDO ESTÁ MAIS BONITO, É PRIMAVERA.