Triste adeus
Hoje eu me deixei invadir pela melancolia. É uma data especial: dou adeus a uma etapa pessoal longa e rica. A vida é feita de escolhas, eu sei. Decidir e bancar renúncias é o mote do ser humano. Nem por isso despedidas ficam menos doídas. Tento apaziguar a mente, lembrando dos adeuses que damos sem nos dar conta que são definitivos. O último sorriso de alguém, a última vez que admiramos o horizonte de uma cidade à qual não retornamos... Em algum momento, todos abdicamos de um amor ou amizade; da escola ou trabalho; de um local, de um sonho... E ninguém morre por causa disso. Há que oxigenar a vida, inaugurar-se a novos ciclos, desvencilhar-se do apego. Recomeçar é crescer na consciência.
Só que hoje minhas conexões neuronais não querem saber de racionalização. Estranha é essa memória que esquece fatos importantes, mas teima em trazer à tona coisas corriqueiras do passado, como se tivessem acontecido ontem. É que a memória é ativada pela emoção, que tem a raiz em motio, movimento. E o que tem movimento é vivo. São as emoções que impulsionam à ação e nos fazem sentir o gosto da vida.
Minhas recordações estão enclausuradas na clínica para órfãs de pais HIV positivos, onde fui voluntária desde os tempos da residência médica. Uma tarde por semana, com raríssimas faltas. Muitas lembranças. Do dia em que Mudinha, menina calada que me fazia pensar numa frágil muda de flor, dessas que a gente não tem certeza se vai dar pega, comunicou que ia dar o nome de “Doutorapaula” para a filha que teria quando crescesse. Contei a ela que meu nome era Maria Paula. Para quem era mudinha, até que ela soube espalhar bem a fofoca: quando retornei, na semana seguinte, todas as bonecas da clínica haviam sido rebatizadas com o meu nome. Do dia em que todas se recusaram a ser atendidas por mim porque alguém espalhara o boato que, grávida, eu não ia mais cuidar delas.
Durante mais de vinte anos, acompanhei semanalmente a vida de meninas tão parecidas e tão diferentes. Histórias alegres e histórias tristes. Dias de riso e dias de arranca-rabo (às vezes eu extrapolava o papel de médica e cobrava delas atitude frente à vida, desempenho escolar, essas coisas). Dias de sufocar o choro quando, ao completarem 18 anos, eram transferidas de lá. Perdi a conta de quantas vidas influenciaram a minha ao longo da convivência.
O tempo é inexorável e modifica tudo. A clínica cresceu, assim como muitas das menininhas – há mães de família, fisioterapeuta, engenheira, advogada, enfermeira, nutricionista, secretárias, voluntárias da casa ... De algumas sou comadre, madrinha de casamento, do filho. Também eu mudei os rumos da profissão e me senti pouco apta para o atendimento ambulatorial. Foi um adeus cuidadosamente planejado: há dois anos, passei a integrar o conselho administrativo da instituição e a procurar uma médica para me substituir. Ela finalmente apareceu há dois meses.
A partir de hoje, não faço mais o percurso da Lagoinha às segundas-feiras e nem trato dor de garganta, pneumonias, candidíases, saudades, indecisões e decepções. A doutora se despediu. Só a contadora de histórias aparecerá por lá a cada 15 dias, para encher as cabecinhas das pequenas de sonhos e fantasias. Só a conselheira aparecerá por lá a cada mês, para tentar ajudar a viabilizar as fantasias dos sonhadores freis franciscanos. É o melhor, estou certa. Mas pressinto que meu peito não vai fazer as pazes com meu cérebro tão cedo.
( Este texto foi escrito durante o vôo SP-BH. Hoje não é dia de entreter, fazer rir ou refletir. Quis apenas extravasar minha emoção. Tem dias que é assim.)