PÉS DE CRISTAL
Quando bem pequenina, eu me deliciava ouvindo estórias contadas por minha mãe ou minha avó paterna. Talvez por isso, eu tenha desenvolvido as capacidades de imaginar as coisas, e, também, de encadear idéias. Creio que ambas são fundamentais para quem gosta de escrever.
Uma das imagens que construí, ao escutar a estória de Cinderela, é aquela em que o príncipe chegava a sua casa, e pedia para que as moradoras provassem um sapatinho, perdido por uma linda moça, com quem dançara em seu castelo na noite anterior. Nesse instante, dando uma de atriz, minha mãe imitava a madrasta e suas duas filhas feiosas e egoístas, tentando fazer com que, em vão, o tal calçado coubesse em suas “patas”. Era uma cena hilariante.
Eu ria por dentro, imaginando a cara de espanto das “meio-irmãs” ao ver a pobrezinha, que elas obrigavam a fazer os serviços domésticos, aparecer deslumbrante num vestido bordado a fios de ouro, com muitos diamantes, esmeraldas e rubis incrustados (Ah, eu imaginava muito mais do que me contavam), mancando à moda: “tá fundo, tá raso, tá fundo, tá raso...”, por estar calçando apenas um dos sapatinhos de cristal.
Antes do “E eles foram felizes para sempre”, eu conseguia “ver” a imagem mais bonita: o príncipe se abaixando, pegando o sapatinho sobre a almofada de veludo e colocando-o no pezinho de sua amada. Que coisa meiga!!!
Já naquela época, eu supunha que a Cinderela deveria ser macérrima, porque... ora, gente,... cristal? Faz sentido? Quem poderia se equilibrar em cima de sapatinhos feitos com um tipo de vidro tão fininho? Eu sabia disso, porque quando mamãe “virava uma onça” com Lourdes, nossa “secretária”, ao escutar o barulho de suas amadas taças sendo estilhaçadas na pia, esta se justificava com aquela dizendo: “Tamém, uns copim finim deis, Don Taly!”.
Já naquela época, eu supunha que a Cinderela deveria ser macérrima, porque... ora, gente,... cristal? Faz sentido? Quem poderia se equilibrar em cima de sapatinhos feitos com um tipo de vidro tão fininho? Eu sabia disso, porque quando mamãe “virava uma onça” com Lourdes, nossa “secretária”, ao escutar o barulho de suas amadas taças sendo estilhaçadas na pia, esta se justificava com aquela dizendo: “Tamém, uns copim finim deis, Don Taly!”.
Quando eu me descobri como gente, parei de pedir para ganhar bonecas e comecei meu amor por sapatos. Eu que, até então, os usava em formatos de “boneca” (bico largo, alcinha perto do tornozelo), morria de inveja vendo minhas amiguinhas calçarem graciosos modelos, e os elegi como presentes de aniversário e de Natal.
Certa feita, meu pai me levou à “cidade” (Era assim que os moradores de Vila Velha chamavam Vitória, a capital do ES) para realizar o meu sonho. O vendedor trouxe dezenas de pares, mas nenhum deles coube: eu não tinha os pezinhos da Cinderela. Os meus não eram exatamente feios, mas tinham algo que me lembravam os das malvadas irmãs de nossa “heroína”.
Com muito custo o moço conseguiu um par branco, feioso (com um detalhe franzido sobre um tipo de elástico, o que permitia que “inquilinos” larguinhos se abrigassem dentro deles), uns dois números maiores que o meu, e eu tive de me conformar. Que decepção!
Ao longo de minha história, o suplício foi aumentando, pois vieram as modas dos tênis de plástico Verlon (quando o sol os esquentava a gente pedia para morrer!), das Congas, dos Kichutes... dos chanéis, das sandálias de solado Anabela, dos sapatos de saltos altos...
Como deixar de usar aquilo que está na moda, quando se é adolescente? Então, comecei a torturar os meus “lindinhos”, espremendo-os para entrarem onde não cabiam. Como represália, meus dois dedinhos viraram duas bolinhas de gude, meu osso do pé esquerdo quis (eu é que não deixei) virar um joanete, e a unha do dedão direito (que caiu quando uma gaveta pesadona caiu sobre ela) nunca mais quis ser igual à sua irmã gêmea.
Hoje, numa época de crédito fácil, apesar de eu poder comprar quantos pares minha sensatez deixar, continuo babando ao ver os sapatos altos, de bicos finos, lindos, nos pés de minhas amigas, sem poder usá-los. Isso porque até mesmo os muito macios, como Picadilly e Ramarim, conseguem me fazer calos.
Diante de tudo isso, quem disse que a Cinderela é melhor do que eu? Ela devia ser magrinha e tinha de se equilibrar em sapatinhos de cristal. Eu sou gordinha (eufemismo puro!) e tenho de ir para qualquer lugar em cima de pés que, por serem tão sensíveis e frágeis, só podem ser feitos do mesmo material.