Na Superfície


Um de meus peixes está doente há quinze dias... Isolei-o no aquário hospital, onde ele fica prostrado, deitado de lado. Repito religiosamente a dose do remédio a cada 48 horas e procuro alimentá-lo no mesmo horário dos outros. Nunca cuidei de um peixe doente por tanto tempo. No terceiro dia, no máximo, ou eles já estão bem ou estão mortos. Se ele não se mexe, penso: é, valentão, não deu, né? E ele, parecendo me ouvir, movimenta as nadadeiras, como a responder: não tenha tanta pressa... ainda estou aqui.

Hoje, ao tentar alimentá-lo, joguei a ração e fiquei na expectativa de que ele fosse abocanhar algum dos grãos que caíram à sua frente, mas ele os ignorou. Depois de vigiá-lo por alguns segundos, fiquei observando os grãos que não afundaram, esquecida do meu pequeno paciente.

Sei que os grãos que boiavam encontravam-se presos à camada limite da água, onde precisam vencer uma pequena barreira de densidade antes de afundarem. Os outros, por terem chegado à água com uma velocidade um pouco maior ou por terem sido logo capturados pela corrente provocada pela bomba de oxigenação, venceram esse pequeno obstáculo e estão lá, espalhados ao fundo do tanque.

Pensei que somos como a água desse tanque. Também temos nossa densidade limítrofe que deixa entrar algumas coisas que recebemos e mantém outras de fora.

Assim, se alguém nos magoa e faz isso de forma rápida e indefensável, essa ofensa nos bate fundo na alma, antes que tenhamos tempo de analisá-la, processá-la, entendê-la. Pode fazer-nos infelizes e cheios de complexos e inseguranças, assim como pode nos fazer odiar a pessoa desastrada que nos atingiu de forma tão grosseira.

Do mesmo modo, se alguém surge num momento em que estamos emocionalmente agitados, ele será tragado por nossos sentimentos em redemoinho e, em pouco tempo, poderá tornar-se um amigo fiel, uma enorme paixão e, muitas vezes, uma grande desilusão.

No caso do meu peixe, quanto antes a ração afundar melhor, pois tenho chance de lançá-la muito próxima dele, para, se ele sentir fome, poder alcançá-la sem muito esforço.
Mas quando o assunto é a nossa permeabilidade, o ideal é que nós a reforcemos com algumas doses de paciência e serenidade. Tenho um amigo que diria, agora:
- Ok! Traz a minha com bastante gelo!
Quem dera fosse tão fácil, né? Sentar num barzinho ao por do sol e pedir ao garçom, em voz tranqüila, um copo duplo de serenidade, com bastante paciência:

- Traz a mais gelada, hein!? Pega aquela do fundo do freezer, a da diretoria... Ah! Traz umas perseverançazinhas fritas pra acompanhar...

Sabemos que a coisa não é assim tão simples. Precisamos nos policiar todo o tempo, ler livros de auto-ajuda ou a Bíblia, aborrecer nossos amigos e aparentados com nossos desabafos, praticar ioga, meditação, freqüentar a igreja...

Existem algumas regrinhas básicas que podem nos ajudar. Meu pai contava uma fábula sobre uma mulher que, cansada de tanto brigar com o marido, foi aconselhar-se com o padre. Ele lhe pediu que fizesse uma experiência. Ela deveria colocar uma pequena porção de água benta na boca, sem engolir ou cuspir, sempre que começassem uma discussão. Com a boca cheia, ela não podia retorquir as implicâncias do marido, e logo ele percebeu que estava agindo mal, arrependeu-se e eles viveram felizes para sempre. É o bom e velho método de contar até dez antes de uma explosão. Não evitará a sua mágoa, mas poderá impedi-lo de piorar as coisas, revidando. Neste intervalo, a pessoa que o magoou poderá aperceber-se do que fez e desculpar-se.

Desarmar-se também pode ser muito bom. Ao receber o que lhe parece uma ofensa, pense se é mesmo. Analise, friamente, as circunstâncias do ataque e, na dúvida, procure certificar-se da intenção do seu autor. Pode ter sido apenas uma brincadeira infeliz ou um revide desproporcional a alguma provocação sua. Por que levar isso adiante?

E, no caso dos anseios em turbilhão? É muito comum uma pessoa, ao fim de um relacionamento que se estendeu por anos a fio, casar-se logo em seguida com outra da qual ninguém ainda havia ouvido falar. No meio do desespero provocado pela desilusão amorosa, a pessoa encontra alguém que lhe dá conforto e agarra-se a este alguém como a uma tábua de salvação. Pode ser que dê certo. Que o relacionamento relâmpago tenha sido realmente fruto de um amor verdadeiro e intenso. Mas, no mais das vezes, os dois logo percebem que não é bem assim, que faltou um tempo para a convivência, para um melhor entendimento dos sentimentos recém nascidos.

Eduardo Nunes, em seu livro “O Segredo das Mulheres Apaixonantes”, sugere que utilizemos uma “camisinha emocional”. Que busquemos sim, viver nossas novas relações. Mas, até que conheçamos a pessoa que está conosco, procuremos manter uma certa cautela em entregar-lhe nosso coração, sonhos e esperanças. Ele não explica como fazer isso, mas entendo que uma boa prática é ter vida própria, interesses variados, outras amizades, de forma que aquela pessoa tenha que conquistar cada pequeno pedaço do seu coração com muito esforço. Isso lhe dará tempo para conhecê-la bem antes de permitir que ela atravesse a sua camada protetora.

Não entenda essas idéias como conselhos. São apenas algumas imagens que me vieram à mente enquanto luto pela vida de meu peixinho, um garboso kinguio de quase vinte centímetros da boca à ponta da cauda e, se você me der licença, preciso ir agora: está na hora de repetir a dose do remédio dele.

Imagem daqui.